O mundo mágico dos Flaming Lips
No dia em que tudo se jogava em Paredes de Coura, os Flaming Lips desceram à infância, transformaram o recinto num gigantesco parque de diversões e deram um concerto que é o mais sério candidato a concerto do ano em Portugal. Mr. Bungle e Coldpay também não estiveram mal.
Depois de duas jornadas em que a música mal chegou para satisfazer o gosto dos festivaleiros, o Festival de Paredes de Coura jogava uma cartada decisiva na sua terceira e última noite. A aposta da organização num cartaz perigosamente alternativo ainda não havia gerado os seus frutos e, se, naquele que era à partida o dia mais forte do festival, os concertos ficassem aquém das expectativas, o feitiço podia bem virar-se contra o feiticeiro. Mas não foi isso que aconteceu. Os norte-americanos Mr. Bungle e os britânicos Coldplay cumpriram à risca tudo aquilo que deles se esperava. Mas foram os Flaming Lips quem mais deu que falar no encerramento da 8ª edição de Paredes de Coura, com uma actuação milagrosa, de contornos mágicos, que é desde já o mais sério candidato a concerto do ano português. Os Flaming Lips - simultaneamente título de um filme pornográfico, referência obscura a uma droga perigosa e imagem de um sonho em que a Virgem Maria beija o vocalista Wayne Coyne na parte de trás de um carro - são uma banda do outro mundo. É um mundo perversamente surreal e assustadoramente "kitsch", um mundo onde padres guiam ambulâncias, as nuvens sabem a metal e os natais são celebrados em jardins zoológicos. É o mundo do faz-de-conta que a brincar fala de coisas sérias, o nosso mundo revirado do avesso e emitido em formato "cinemascope", o mundo feito desenho animado, onde tudo, mas rigorosamente tudo, pode acontecer.A banda norte-americana transformou Paredes de Coura num gigantesco parque de recreio, sem que para isso tenha recorrido a ideias extravagantes, como aquela que levou Coyne a compor em tempos uma orquestra para 40 automóveis com diferentes cassetes a emitirem em simultâneo. Bastou-lhes um ecrã de médias dimensões na dianteira do palco, e que era accionado como um instrumento, por onde desfilaram imagens de sonho e fantasia - dos deleitosos "teletubbies" a ovos estrelados lambuzados com prazer, de alucinadas sessões de estúdio ao assombro mágico de "O Feiticeiro de Oz" - que gravitavam em perfeita sintonia com o encanto das canções. Estas centraram-se na sua maioria em "The Soft Bulletin", o magnífico último álbum dos Flaming Lips, mas houve ainda tempo para breves incursões pelos anteriores "Zaireeka" e "Transmissions from the Satellite Heart" e para uma sublime versão de "Somewhere over the rainbow", que encerraria em regime efabulatório um concerto em absoluto estado de graça. O público sentiu-se criança, brincou no parque mágico dos Flaming Lips e deixou-se embalar pelo universo fantástico do trio norte-americano. Antes haviam actuado os portuenses Sloppy Joe e os bracarenses Mão Morta, estes a jogarem em casa e a não desperdiçarem o ensejo. Mas a derradeira jornada de Paredes de Coura estava destinada ao brilho do cartel internacional, e tanto os Coldplay como os Mr. Bungle produziram récitas suficientemente esclarecidas para entusiasmar os cerca de 15 mil presentes. Os primeiros são os novos meninos-bonitos da pop britânica, em parte porque se demarcam dos modelos gastos da "brit-pop" para fabricarem canções informadas por elementos de "folk" e psicadelismo. São canções sibilantes e vagarosas, densas e taciturnas, servidas por um quarteto que teve o condão de entusiasmar uma plateia desconhecedora. Já os Mr. Bungle, a quem coube o privilégio de encerrar o festival, tinham a seu lado uma legião de devotos conhecedores de "California", álbum admirável que contém em si três décadas de música popular e que se cotou como um dos melhores álbuns do ano transacto. Era com expectativa que se aguardava a transposição do registo de estúdio para o ambiente de palco, mas os Mr. Bungle preferiram demarcar-se da fidelidade ao álbum para se socorrerem da fleumática energia que o admirável Mike Patton, mascarado de cicerone havaiano, imprime a cada uma das suas actuações. Houve momentos em que o concerto mais parecia um verdadeiro massacre, mas o público não se queixou. E foi com um espectáculo de fogo-de-artifício que chegou ao fim mais uma edição do Festival de Paredes de Coura.