Angústias dos "gays" católicos
Carregam anátemas, são alvo de condenações e rejeitados pela hierarquia. A existência de católicos homossexuais é um embaraço para a Igreja de Roma. Os documentos oficiais censuram os actos, ao mesmo tempo que absolutizam o valor da castidade. Emparedados entre o mundo "gay", que desconfia dos católicos, e a instituição católica, que marginaliza a cultura "gay", os crentes homo prosseguem a sua estrada e já não sofrem "por razões estúpidas".
No Ano do Jubileu, os homossexuais católicos esperariam do Papa mais do que a condenação da sua orientação sexual e a citação do catecismo. "Os actos homossexuais são contrários à lei natural. Um número não negligenciável de homens e mulheres apresentam tendências homossexuais de raiz. Eles não escolhem a sua condição (...). Evitar-se-á para com eles qualquer marca de discriminação injusta." Entre os crentes homossexuais já não há esperança de que João Paulo II abra o seu reino a este mundo.Vicenzo teme que "a Igreja se esteja a afastar de Cristo", Luciana rejeita "o Deus quadrado que [lhe] aponta o dedo" e Matilde vive "muito longe dos discursos". As palavras do Papa Wojtyla não traduzem, apesar da acutilância, a situação dos homossexuais dentro da Igreja Católica, em Itália. A hierarquia e os documentos oficiais mantêm um discurso exclusivista, há relatos de atitudes discriminatórias, de toda a espécie de anátemas, mas há também espaços de tolerância e acolhimento, movimentos tacitamente aceites pela hierarquia, que, regra geral, se remete a um silêncio eloquente."Eu nem sequer sabia que existiam. Era muito ignorante. Nunca tinha pensado no problema. Isso só aconteceu muito depois." Luciana, 52 anos, lésbica, católica, distancia-se das posições eclesiásticas em matéria sexual. Não é a única. A convicção geral é a de que o monolitismo da Igreja de Roma nessas questões decorre de uma impotência. "Na questão da sexualidade, a Igreja sente que perdeu o controlo. Fica irritada porque não consegue tutelar as decisões das pessoas. Sente que perdeu poder", observa Matilde.A relação entre a Igreja e estes fiéis transforma-se numa "pseudocomunhão, no fundo da qual se encontra apenas a destruição da pessoa". "Se as premissas são estas, então é difícil projectar para o católico homossexual algo que não seja a repressão da tendência", conclui Domenico Pezzini, padre, docente na Universidade de Verona, considerado o decano dos teóricos do tema. Pezzini foi o impulsionador dos primeiros grupos de homossexuais cristãos e é autor de uma vasta literatura sobre a matéria. "Na hierarquia da Igreja Católica, há muito que deixei de tentar procurar interlocutores", lamentou-se ao PÚBLICO. Apesar das portas fechadas, concorda que existem duas igrejas a tratar deste assunto - a oficial e a das comunidades. É nesta que a maioria dos homossexuais procura auxílio. Junto das comunidades de missionários, das ordens religiosas ou mesmo através de grupos de leigos da mesma condição que desde os meados da década de 80 têm surgido um pouco por toda a Itália. Foi assim com Luciana, que num período de crise na sua vida, deparou com um artigo sobre fé e homossexualidade. "A necessidade fez-se virtude", e decidiu escrever a vários padres relatando o seu caso. Só um lhe respondeu para revelar a existência de um desses grupos, em Bolonha, a sua cidade. Mas quando Luciana ali chegou ia já na ressaca de uma história afectiva feita de clandestinidade e distância. "Isto que agora parece um discurso muito sereno tem por trás um caminho muito sofrido", diz Vicenzo. O sofrimento, a reflexão sobre a sexualidade e a sua articulação com a espiritualidade cristã foram estradas percorridas, por todos, nas franjas da Igreja. A relação com a instituição ou a representação individual de Deus levantam divergências entre os católicos "gay". Da mesma forma que matérias delicadas como a legalização das uniões de facto ou a adopção de menores por homossexuais.Como diz Vicenzo, "faltam modelos de vida, uma pastoral homossexual organizada", que disponibilize um acolhimento espiritual e permita o crescimento na fé, evitando os anátemas. "Embora me sinta mais discriminado como católico no mundo laico homossexual do que o contrário, a posição da Igreja continua a ser muito bloqueadora", lamenta-se. "Ao princípio, pensava que a minha sexualidade fosse uma maldição. Agora vejo-a como um dom que deve ser desfrutado."Lorenzo foi absorvido por pensamentos mais dramáticos: "Pensei mesmo que Deus me estava a atirar para a lama." Para Matilde, "os pecados são outros": "Quando não estou disponível, quando bloqueio a minha relação de amor, aí sim, estou a cometer um pecado.""Se vou com o primeiro rapaz que me aparece, sim, estou a pecar", retoma Vicenzo. "Por enquanto mantenho a minha castidade. Só tenho medo de não estar a cumprir o projecto que Deus me reservou", confidencia, algo embaraçado.Na ausência de espiritualidade traçada pelos documentos, Domenico Pezzini estabeleceu propostas de um caminho espiritual para as pessoas homossexuais, divulgadas em livros, revistas católicas ou grupos de cristãos homossexuais. Mas encontrar "na condição e na experiência homossexual indícios de crescimento na fé e na vida cristã apresenta uma série de dificuldades", reconhece. Sem ignorar o valor relativo das suas propostas, Pezzini considera que, "antes de mais, é importante encontrar a parte positiva das situações". "O princípio é não sofrer por razões estúpidas." A este propósito, cita o moralista inglês Kevin Kelly. "Se alguns homens e mulheres se sentem profundamente homossexuais, não é por isso que não serão amados por Deus ou chamados a viver uma vida de amor interpessoal. (...) a Igreja deve ajudar os homossexuais a viver uma vida de amor fiel. Rejeitar uma ajuda seria isolá-los e empurrá-los para o conforto de relações promíscuas." Em síntese, Pezzini propõe três valores fundamentais para uma espiritualidade católica homossexual: respeito pelo outro, fidelidade e exclusividade. Três valores inerentes ao mistério da Trindade. "Amar significa permanecer numa relação", tal como acontece "entre as pessoas da Santíssima Trindade".A construção de uma família é outro dos assuntos emergentes. Houve tempo em que Luciana pensava no tema dos filhos. "Não sei se como pai ou mãe. Não falo do ponto de vista físico... Mas não tenho claro o problema da adopção de crianças por casais homo." Ao contrário de Vicenzo e Lorenzo, que rejeitam a ideia de famílias tuteladas por casais homossexuais. "Este é outro erro da Igreja. Eu não sou contra a família tradicional. Que venha a família", defende Vicenzo. "Acho até que a família se deve reduzir à família biológica. Um pai e uma mãe são referências importantes para o crescimento psicológico da criança." Distinta é a posição de Matilde que "gostaria de adoptar". "Acho absurdo - mesmo para os casais homossexuais - que seja sempre uma dificuldade adoptar uma criança quando existem tantas em situações de abandono." E contesta Vicenzo: "Perturbações psicológicas? Acho que não. Onde estavam estas pessoas que falam em desordens psicológicas quando nós crescemos em casa de casais heterossexuais?"E lembra o caso das crianças órfãs. "Acho que as crianças podem crescer serenamente, desde que haja um ambiente de amor e tranquilidade." Apesar das dúvidas, Luciana resolveu consigo a questão dos filhos: "Fecundidade não é dar vida a uma criança, é dar sentido à vida de outra pessoa." A mesma relação que os católicos reivindicam do seu Deus. Desdobrado em imagens de generosidade, tolerância e graça, os homossexuais evocam sobretudo o Deus-Amor que Luciana, a princípio, não conseguia conciliar com o Deus-padrasto que "apontava o dedo". Ou a figura de Deus-pai, que Vicenzo tenta "não tratar por tu", procurando "sempre a mediação da Igreja". Matilde empenha-se numa busca diária. "Vivo longe dos discursos da Igreja. Procuro o meu Deus como uma fonte de sensibilidade, oportunidade de crescimento interior e conhecimento dos outros."Inexplicavelmente, Luciana revela-se agora mais distante. "A relação esfriou, não sei... tem-me custado orar. Mas continua a ajudar-me muito", admite.