Inferno na Estrada da Malveira

A mancha verde do Parque Natural Sintra-Cascais está agora bem menor. Ontem, pelo menos 500 hectares, o equivalente a meio Parque Florestal de Monsanto, o pulmão de Lisboa, foram consumidos pela passagem impiedosa das chamas. "Agora ficamos a viver no meio do negro", dizia uma moradora cuja casa esteve a um passo de ser consumida pelo incêndio, que teve origem numa festa, tal como aconteceu antes em Góis. Este ano, segundo um relatório provisório da Direcção-Geral de Florestas, já arderam quase 23 mil hectares de terreno, dos quais 11 mil são povoamentos florestais.

Um pequeno fogo que deflagrou às 11h00 numa roulote de comes e bebes, por causa de uma botija de gás, na festa da Malveira da Serra, em Cascais, foi o rastilho para o mar de chamas que ontem consumiu pelo menos 500 hectares do Parque Natural de Sintra-Cascais. Um manto negro estendeu-se à Quinta da Marinha e às zonas do Abano e do Raso.A estrada Malveira da Serra-Guincho era, ao princípio da tarde, um pedaço de inferno. O fumo intenso fazia os olhos chorar e cortava a respiração. O calor vindo da terra sufocava e secava a boca e a garganta. As cinzas pareciam pontas de fogo quando tocavam na pele. De todos os lados se sentia o crepitar da madeira ao ser devorada pelas chamas. A casa de Isabel Rodrigo, que fica perto do recinto da festa de Nossa Senhora da Assunção, foi uma das primeiras a ser ameaçada pelas chamas. "Estava ali meia dúzia de homens a olhar para o fogo e nenhum fez nada. Quando cá chegaram os bombeiros já era tudo labaredas", descreve. Ficou aflita. O carro de um vizinho estava estacionado à porta de casa. Partiram os vidros, destravaram-no e afastaram-no. Mesmo assim, ficou com a traseira queimada. Até com uma almofada Isabel bateu nas chamas, que chegaram a meio metro da janela de sua casa. "Agora ficamos a viver no meio do negro".Por volta das 13h30, numa casa perto, José Francisco Correia, de mangueira em punho, tenta estancar o fumo que ainda sai de um emaranhado de roupas queimadas, plásticos derretidos e até uma máquina de lavar roupa. Duas carcaças de frango esturricadas fumegam perto. São os restos da capoeira da mãe de Francisco. O carro ardido é seu. Já decidiu abrir uma queixa-crime na GNR. Embora ainda não saiba contra quem. "Alguém tem de pagar isto", afirma, com amargura.Ao longo da estrada, há postes de telefone queimados e caídos. As protecções laterais da estrada são um pedaço de metal retorcido. Não há luz, telefone ou água. No Centro de Hipismo da Charneca, cerca das 15h00, são retirados os cavalos. Na mesma altura, na Areia, são dadas ordens para evacuar o Parque de Campismo da Orbitur. As chamas já percorreram quase toda a estrada entre a Malveira da Serra e o Guincho. O pânico instala-se entre os campistas e alguns moradores da aldeia, que são obrigados a sair de suas casas. No entanto, apesar de andarem junto à vedação, as labaredas acabaram por não atingir o parque, com excepção de uma tenda, que terá ardido na zona norte, como constatou o PÚBLICO, durante uma visita com o comandante dos Voluntários de Cascais, Francisco Rosado Santos.Maria do Rosário Tomás assentou arraiais na beira do enorme tanque de lavar a roupa e da fonte, mesmo no centro de Areia. Consigo levou um saco com algumas roupas que os filhos conseguiram tirar à pressa de casa, numa zona no meio do pinhal chamada Caiaguas, ao fundo da aldeia de Areia: a gaiola com o papagaio Jacó, e as duas cadelas, a Manda Vir e a Paga Já. Às cinco da tarde, o fumo é tão escuro que se faz noite em Areia. O sol torna-se uma bolinha laranja lá no alto. O vento é cada vez mais forte, com rajadas de pelo menos 34 quilómetros por hora, segundo o inspector dos bombeiros, Moreira Vicente. Não há água nem leite nas poucas lojas da povoação. O leite é trazido numa carrinha da Câmara de Cascais.Na Quinta da Marinha, as chamas consumiram uma garagem de uma moradia em construção. Propagaram-se com grande facilidade pelos tufos de vegetação das dunas. Embora se saiba como começou o incêndio, muitas dúvidas havia à volta da sua propagação. De repente, acenderam-se muitos focos nos sítios mais diversos. "Houve até um na Praça de Touros de Cascais e outro na Escola Secundária", contou o comandante de Cascais.Pelas 18h00, a situação volta a complicar-se na Malveira da Serra e na Charneca. Numa encosta, as labaredas chegam aos três metros. Maria de Jesus Passarinho é voluntária nos bombeiros de Vila Franca de Xira. Sentada no chão de cimento, devora uma sandes de queijo para acalmar o estômago vazio desde as 20h00 de terça-feira. Mais abaixo, vários carros fazem o rescaldo junto da discoteca News. Outros arrancam a toda a velocidade para a Charneca. Há muito fumo a sair do meio da mata, onde se distinguem vários telhados. Ao mesmo tempo, ainda no Abano, o fogo avança com força em direcção ao mar. Já há muito pouco por arder. Ao cair da noite, Francisco Rosado adiantou que lavravam ainda sem controlo duas frentes na zona do Chesol e em direcção ao Raso. Segundo o Centro de Coordenação Operacional em Almoçageme, foram mobilizados para o combate às chamas uma centena de viaturas, 268 bombeiros, três aviões e um helicóptero. Uma fonte do Hospital de Cascais adiantou que foram ali assistidos oito bombeiros e um civil com queimaduras "de primeiro e segundo graus" e outros sete bombeiros intoxicados pelo fumo. Ao cair da noite, o presidente da Câmara de Cascais, José Luís Judas, calculava "que tenham ardido no total 500 hectares".*com Luís Filipe Sebastião

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