O imperador da polémica
É nos meios rurais pobres da América Central e do Sul que a doença descoberta pelo médico brasileiro Carlos Chagas, no princípio do século passado, continua a matar mais. Cerca de 20 milhões de pessoas ainda sofrem da doença. Mas cientistas, entre os quais portugueses, acham que na compreensão desta doença pode estar a chave para tantas outras como a malária, ou a doença do sono.
Carlos V, o rei que casou com Isabel de Portugal, terá sido o percursor de uma Europa unida, ou apenas o monarca de um reino vasto "onde o sol nunca se põe"? "Bebeu" o humanismo e as suas construções filosóficas ou interessavam-lhe mais os bens patrimoniais? Foi "espanholizado" ou forçou adeptos em Castela? O debate está na mesa, em Espanha. Em três congressos recentemente realizados em diversos pontos de Espanha sobre Carlos V foi patente a divisão dos historiadores sobre o significado do reinado do monarca. Na comemoração do 500º aniversário do seu nascimento, o rei que casou com Isabel de Portugal, filha de D. João III, passou a ser o imperador de uma nova polémica.A historiografia relaciona biografias e factos, a identidade pessoal e a obra, os movimentos sociais e as condicionantes da sua eclosão. Depois interpreta e conclui. Em Espanha, desde que o labor de Cánovas del Castillo incorporou a dinastia austríaca na evolução da história espanhola, Carlos V passou ao género de "património nacional". Ainda mais, quando no final da sua vida, o monarca se retira e aguarda pela morte no convento de São Jerónimo de Yuste, na Estremadura espanhola. No entanto há estudos discordantes, como diferentes das habituais interpretações são as mais recentes análises sobre o imperador do "reino onde o sol nunca se põe". Nesta última óptica, Carlos I de Áustria e V de Espanha, filho de Filipe de Habsburgo e de Joana-a-Louca, não foi o percursor de uma Europa unida."Um dos mais vulgares lugares comuns é a "espanholização" do monarca, a ideia de que veio a Espanha e assimilou os seus costumes, mas tal é uma mentira histórica pois, na verdade, foram os espanhóis que se esforçaram por colocar Carlos V na sua história", observou o catedrático José Martinez Milán. Foi assim que este professor de História Moderna da Universidade Autónoma de Madrid abriu um dos congressos. Uma tese beligerante com a tradição de del Castillo: "Carlos V meteu a Espanha numa série de guerras que, apesar da descoberta da América, levaram o país à ruína económica". Mais: "O ouro [das Américas] converteu-se em pólvora por defender posições e uma ideologia que não era compartilhada pelos castelhanos, cuja mentalidade era completamente diferente". E a tese de Martinez Milán subiu de tom: "Entre os interesses do monarca destacavam-se mais os patrimoniais que as grandes construções filosóficas".Herdeiro da coroa de Espanha desde a morte de Isabel a Católica, Carlos da Áustria recebeu o trono em 1516, quando tinha 16 anos. O seu reinado coincidiu com uma época de profundas reformas políticas, religiosas e culturais na Europa. Os humanistas, os agentes da mudança, nele depositaram as suas esperanças. Mas o professor Milán advertiu agora: "O imperador destruiu toda a ideia do humanismo político quando assaltou Roma e começou a perseguição a Erasmo de Roterdão". Depois, Felipe II. o herdeiro do monarca, enveredou por uma estrutura monárquica próxima dos ideais da contra reforma.Diferente é a posição de Alfred Kohler, o austríaco autor da biografia de referência de Carlos V. "Havia que dar a impressão que o monarca foi flamengo por ter nascido em Gant e se expressar em flamengo, mas no entanto ele cresceu no ambiente cultural da corte de Borgonha", precisou. Kohler, catedrático de História da Universidade de Viena, adiantou: "Foi a Castela, cenário da rebelião dos comuneiros no início do seu reinado e onde se retira [no convento de São Jerónimo de Yuste] que se converte no centro da sua política". O que, insistiu o professor austríaco, também determinou a preferência do monarca - "talvez por contemplação religiosa" - por um mosteiro na Estremadura espanhola, onde morreu, em detrimento da Flandres natal: "Porventura devido ao protestantismo a Flandres estava cada vez mais longe dele". Alfred Kohler é discípulo de Heinrich Lutz, que estudou as políticas de Carlos V como premonição de um fenómeno de unidade europeia. Uma visão, no entanto, despedaçada há poucas semanas pelo britânico John Elliot num congresso de historiadores em Granada. "É necessário desterrar o lugar comum de que Carlos V foi percursor de uma Europa Unida", assinalou o professor de Oxford. Elliot, um dos mais prestigiados hispanistas, esgrimiu os seus argumentos: "A política do monarca não contemplava a possibilidade de uma organização supranacional, ele tentou "apagar fogos" por toda a Europa e não teve tempo nem interesse em dar coesão aos seus domínios". E o historiador britânico não hesitou em entrar no sempre arriscado exercício de comparações: "Na Europa actual há uma organização supranacional em Bruxelas e uma globalização económica, mas também ocorre a fragmentação do Estado nação em autonomias, grupos étnicos e regiões". Neste ponto, prosseguiu, há um certo paralelismo da actual Europa com a do século XVI: "Inglaterra, Áustria, Sabóia e Espanha eram uniões de diferentes reinos, o que os historiadores denominam como monarquia composta, a de Carlos V foi uma monarquia composta mas a uma maior escala".