Ir à televisão e depois morrer
Horas depois de ter aparecido num programa estilo barrela que, nos Estados Unidos, é visto por 33 milhões de pessoas por dia, uma mulher foi espancada até à morte em casa. A polícia procura o seu ex-marido e a actual mulher, que também participaram no "The Jerry Springer Show", onde revelaram, perante ela e mais uns milhões, que se tinham casado secretamente. Sórdidos e populares, os "talk-shows" estão agora debaixo de fogo.
Já não é a primeira vez que um participante num "talk-show" se expôs e foi exposto ao mundo para horas depois ser encontrado morto. No ano passado, a produção de um programa intitulado "The Jenny Jones Show" foi condenado a pagar 25 milhões de dólares de indemnização à família de um rapaz que foi assassinado por outro de 24 anos que participou no programa à esperava conhecer uma fã secreta em directo. Afinal, assistiu à confissão amorosa assolapada de um seu vizinho gay. Dias depois, o humilhado jovem acabou por matar o vizinho homossexual. Foi preso e o advogado da família da vítima convenceu o júri de que o programa tinha responsabilidades no sucedido. O "talk-show" foi suspenso e o advogado deste processo foi agora, um ano depois, contactado pelos filhos de Nancy Campbell-Panitz, a mulher de 52 anos que apareceu morta horas depois de um programa do "The Jerry Springer Show" onde ela participou ter ido para o ar.A história deste caso que ressuscitou a adormecida polémica em torno dos" talk-shows", feitos de insultos e pugilato, conta-se rapidamente. É um típico caso dos programas de Jerry Springer, o mais famoso apresentador do género dos Estados Unidos, cujo programa é visto por 5,4 milhões por pessoas diariamente. Ao todo, há oito programas do género em exibição nas televisões norte-americanas. O Jerry Springer é o pior de todos. O da Oprah Winfrey é o mais 'soft', não tem cadeiras a voar e maxilares partidos, coisa em que ninguém rivaliza com Jerry Springer, e é visto por 7,5 milhões todos os dias.As audiências de Jerry Springer são ávidas de enredos sórdidos com coreografias à altura. Desta feita, a vítima era uma mulher que mantiva uma disputa violentíssima com o ex-marido, de 40 anos, praticamente desde que o conheceu até ao dia em que morreu. O casamento deles durou 15 meses e acabou em 1995, mas desde então que ambos e mais a actual mulher dele, mantinham uma guerra feia em torno da posse de uma casa. Na véspera da gravação do programa, em Maio, ele dormiu com ela, alegadamente para a persuadir a participar no Springer Show do dia seguinte. Ela foi, convencida de que ele se preparava para se reconciliar com ela, rejeitando publicamente a sua namorada da altura, num gesto de suprema humilhação. Saiu-lhe o tiro pela culatra: o que aconteceu perante as câmaras, foi que o ex-marido e a namorada revelaram-lhe que se tinham casado às escondidas, aproveitando para fazer o relato achincalhante de todos os detalhes nauseabundos da história. O casal confessou à ruidosa audiência do programa que ela era um estorvo e que os impedia de ter uma vida normal. Jerry Springer, salomónico, faz a síntese: "Ele não quer ficar consigo", diz ele a Nancy Panitz. Ela responde "Tudo bem. Adeus", e abandona o estúdio. Três meses depois, horas após a emissão desta gravação, o corpo de Nancy aparece sem vida no chão da cozinha, espancado até à morte. Horas antes, a vítima tinha pedido, e obtido, uma ordem de constrangimento do tribunal, que proibia o ex-marido e a mulher de se aproximarem da casa. A polícia não estabeleceu imediatemente uma relação directa entre o programa e o assassinato, por haver um grande intervalo entre a gravação e a exibição da peça. Mas ontem já tinha emitido um mandato de captura em nome dos dois suspeitos, entretanto fugidos e presumivelmente a caminho da fronteira com o Canadá.Tudo isto se passou num lugar chamado Sarasota, na Florida, onde, por ironia, o próprio Jerry Springer tem uma casa, mas estas coincidências não foram suficientes para que ele se lembrasse da vitima quando confrontado com a notícia. Disse apenas que lamentava a tragédia e esperava que apanhassem os culpados. A porta-voz do programa acrescentou que estavam a fazer tudo para colaborar com a polícia.Tanta parcimonia nas declarações deve-se ao súbito escrutínio que tombou sobre os programas tipo Jerry Springer. A morte de Nancy Panitz provocou nos norte-americanos um rebate de consciência tão fanático quanto a devoção que eles têm a programas ignóbeis de televisão e os jornais encheram-se de explicações sobre o que move os participantes destes talk-shows. "Eles são tratados como estrelas de cinema antes do programa ir para o ar e quando tudo acaba deixam-nos ir embora sem mais", afirmou um terapeuta citado pelo "The Guardian", Jamie Huysman, que gere um negócio de aconselhamento a participantes em "talk-shows" e que tem 500 clientes. O terapeuta defendia que a produção devia fazer o acompanhamento das pessoas depois dos programas. Nancy está agora a caminho da sacralização, com as televisões a exibirem repetidamente imagens extraídas do programa que, provavelmente, a condenou à morte.