Um compositor para a eternidade
Equiparado a um Deus por músicos e melómanos, memória e síntese do passado e herança inesgotável para o futuro, J. S. Bach é considerado quase por unanimidade como o maior compositor de todos os tempos. Faleceu há 250, mas a sua música permanece mais viva do que nunca, fonte de deleite para os sentidos e alimento espiritual para a eternidade.
Johann Sebastian Bach faleceu em Leipzig a 28 de Julho de 1750. Passavam alguns minutos das 20h quando foi vítima de uma apoplexia. Poucos dias antes tinha sido objecto de uma mal sucedida operação cirúrgica aos olhos - estava quase cego devido às cataratas - e vivia um período de grande debilidade física. Deixou o décimo quarto contraponto da "Arte da Fuga" por concluir - o seu filho Carl Philipp Emanuel anotou no manuscrito "aqui, onde o nome BACH aparece como contratema, morre o autor" - e uma obra imensa para a eternidade, onde a genialidade surge compasso a compasso, numa proporção perfeita entre razão e emoção, desde a peça mais singela composta para os seus alunos às obras monumentais da maturidade.Bach será dos poucos compositores consensuais da história da música. Mesmo personalidades tão populares como Mozart e Beethoven suscitam ódios e paixões. Há quem não suporte o primeiro ou quem afirme que a produção do segundo é irregular. Mas Bach permanece acima de qualquer suspeita, eterno e intocável na sua grandeza. É um lugar comum dizer-se que a sua música resiste a tudo, mas é também uma evidência. Em instrumentos modernos ou em interpretações históricas, em versões jazz ou rock, a sua personalidade é indestrutível, e consegue sempre espreitar por detrás daquelas manipulações que os puristas consideraram um verdadeiro assassinato musical.Súmula do barroco, a sua produção é também um verdadeiro compêndio de técnicas e estilos, essencial à formação de qualquer músico. Dos primeiros passos na aprendizagem de um instrumento aos momentos de glória de uma bem sucedida carreira profissional os repertórios mudam, mas Bach permanece um companheiro obrigatório.Glorificado pelas gerações futuras, depois de décadas de esquecimento fora dos círculos de conhecedores, Bach teve na sua época uma carreira escassa em grandes acontecimentos, similar à de muitos funcionários musicais da Alemanha luterana. Era um homem de grande tenacidade - na sua juventude percorreu 320 quilómetros a pé a fim de escutar o famoso Buxtheude -, um artista devoto e um trabalhador incansável. Quando o criticavam por escrever peças demasiado difíceis, respondia: "Trabalhe diligentemente e tudo correrá bem; tem em cada mão cinco dedos tão saudáveis como os meus!"Bach nasceu em Eisenach, a 21 de Março de 1785, no seio de uma família de músicos, que se prolongou por seis gerações, desde 1580 até ao séc. XIX. Ele próprio seria um prolífico continuador da dinastia Bach, trazendo ao mundo 20 filhos resultantes de dois casamentos - com a sua prima Maria Bárbara e com Anna Magdalena, participante activa da actividade profissional do marido e uma das mais importantes copistas da sua obra. Bach recebeu os primeiros ensinamentos musicais de seu pai, músico da cidade de Eisenach e, depois da morte deste, do seu tio Johann Christoph, organista e discípulo de Pachelbel. No entanto, pode dizer-se que os mestres de Bach foram todos os grandes criadores da música europeia que o precederam, com os quais se familiarizou a partir da cópia de partituras. Copiava-as à luz da vela, às escondidas do seu irmão mais velho, quando era criança, e continuou a fazê-lo durante toda a vida. Este método de estudo permitiu-lhe familiarizar-se com os principais estilos da sua época (italiano, francês e alemão) e edificar uma síntese tão notável, quanto perfeita da música do seu tempo.Os primeiros cargos importantes de Bach foram os de organista em Arnstadt (1703-7) e Mühlhausen (1707-8), aos quais se seguiram os de organista e mestre de capela do Duque de Weimar (1708-17) e o de director musical da corte de Köthen (1717-23). Na última fase da sua vida, Bach foi Kantor da escola de São Tomás de Leipzig e director musical da cidade (1723-50). Estas funções deram origem a cinco períodos criativos distintos, decorrentes das suas obrigações profissionais. Bach abordou todos os géneros, à excepção da ópera. Em Arnstadt, Mühlhausen e Weimar, onde era organista, compôs sobretudo para órgão, enquanto em Köthen, corte calvinista onde a música religiosa estava excluída do quotidiano, a sua produção incidiu sobretudo na música instrumental destinada ao entretenimento da corte. Aqui nasceram obras como os Concertos Brandeburgueses, as Suites para violoncelo, as Sonatas e Partitas para violino solo, as Suites Francesas e as Suites Inglesas, o Cravo bem Temperado e muitas outras páginas inesquecíveis.Finalmente, Leipzig foi, por razões óbvias, o período mais fecundo para a música vocal religiosa, mas viu nascer também algumas páginas instrumentais da maturidade - mais de 200 cantatas, as Paixões segundo São Mateus e segundo São João, a Missa em Si menor, o 2º caderno do Cravo bem Temperado, as Variações Goldberg, grandes obras especulativas do final da vida como a Oferenda Musical ou A Arte da Fuga...Apesar de ter gozado de uma certa fama como virtuoso do órgão e compositor, a projecção de Bach foi bem menor que a de muitos dos seus contemporâneos, como Haendel ou Telemann, mais cosmopolitas e aclamados a nível europeu. Durante as décadas em que Bach compôs algumas das suas obras mais importantes (1720-30), um novo estilo associado à ópera italiana invadia a Alemanha e o resto da Europa, fazendo com que a sua música parecesse obsoleta aos ouvidos dos contemporâneos. Os seus próprios filhos aderiram às correntes mais vanguardistas, afastando-se em certa medida da herança do pai.Algumas opiniões da época, como as do crítico e compositor Johann Adolph Scheibe (1708-1776), fazem-nos hoje sorrir: "Este grande homem seria a admiração de nações inteiras se fosse mais ameno, se não afastasse o elemento natural das suas peças ao outorgar-lhe um estilo empolado e confuso e se não escurecesse a sua beleza com excesso de artifícios."Após a morte de Bach, a sua música ficou na sombra face aos novos rumos da linguagem musical, mas a ideia mítica de que teria sido Mendelssohn a salvá-lo do esquecimento com a execução pública da "Paixão segundo São Mateus", em 1829, está longe de corresponder à verdade. Esta apenas marca a entrada da obra religiosa de Bach na esfera dos concertos laicos. Tirando a obra religiosa, que declinou rapidamente devido ao seu carácter funcional, a obra instrumental jamais deixou de ser interpretada na Alemanha. Em 1783 uma gazeta musical mencionava a interpretação do Cravo bem Temperado por um jovem prodígio de 13 anos - "um certo Beethoven..." - e em 1801 diz-se que qualquer músico alemão possuía uma obra de Bach. É também nesta data que Pleyel publica A Arte da Fuga em Paris. A maior parte dos músicos importantes do século XIX estudavam e tocavam Bach regularmente e no século XX - nas últimas décadas com um conhecimento estilístico mais esclarecido, graças às aborgdagens históricas - músicos e melómanos continuaram a prestar, em crescendo, homenagem ao "mais extraordinário milagre que existiu em toda a música" - Wagner "dixit".