O processo revolucionário em curso
Impressionante e esmagador - 11 dias para 24 concertos, quatro "workshops", duas "masterclasses", dois filmes, uma conferência mais uma mesa-redonda. É a radiografia da 17ª edição do Jazz em Agosto, o maior e mais ambicioso festival de jazz alguma vez feito em Portugal, com estreia marcada para a próxima terça-feira, dia 1. De 1999 para 2000, a revolução foi total. Um verdadeiro PREC (processo revolucionário em curso) no jazz produzido na Fundação Gulbenkian.
Subitamente, quando a integração do Acarte no Serviço do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, concretizada em 1999 sob o nome de CAM/Acarte, lançou uma núvem de apreensões sobre a continuidade do Jazz em Agosto, eis que o festival não só sobrevive como surge totalmente remodelado. Uma autêntica revolução: na concepção, no relacionamento da casa-mãe da fundação com o próprio festival e na sua dimensão orçamental.Conceptualmente, o Jazz em Agosto 2000 salta a pés juntos para a(s) terra(s) das denominadas vanguardas, abrindo-se num amplo leque de perspectivas, opções e caminhos. Para deixar bem claro que no jazz (e seus afluentes e vizinhanças) a diversidade vale mais do que a homogeneidade. A ideia de que a "vanguarda" é uma estética uniforme e de sentido único é tão absurda como a defesa da indiferenciação das orquestras swing (de Jimmie Lunceford, Chick Webb e Count Basie a Tommy Dorsey, Benny Goodman ou Artie Shaw) ou dos combos boppers (de Parker, Dizzy e Monk aos Jazz Messengers, Max Roach-Clifford Brown Quintet ou The Jazztet).Num tempo em que a globalização do jazz esbateu as linhas de fronteira dos géneros mas reforçou as identidades nacionais (desde que praticadas como pontes, em vez de muros, para o seu próprio universalismo), o festival visita as duas margens atlânticas, com uma clara maioria de nomes americanos, invertendo assim uma tendência crescente no circuito dos festivais portugueses.A simples leitura do cartaz de Jazz em Agosto basta para dimensionar a sua importância. Qualquer palco do mundo, interessado nas áreas musicais seleccionadas, ambicionaria uma tal programação. Dos ícones de um passado histórico identificado com o free jazz à multiplicidade dos seus reflexos contemporâneos, a oferta é generosa e aberta: Anthony Braxton e Leroy Jenkins, Misha Mengelberg e Han Bennink, Ellery Eskelin e Ken Vandermark, Peter Brötzmann e Bruno Chevillon, Joe Morris e John Purcell, Hugh Ragin e Myra Melford, William Parker e a Instant Composers Pool Orchestra, passando por um dos teóricos da palavra do free, o poeta e crítico Amiri Baraka (ex-LeRoi Jones). A reunião desta impressionante panóplia de personalidades permite ao regressado Rui Neves - convidado por Mário Carneiro, director-adjunto do CAM/Acarte, para comissário do Jazz em Agosto 2000 - jogar inteligentemente um gigantesco xadrez musical de combinações instrumentais e conceptuais que, aliás, são um eixo estruturante da organização do jazz contemporâneo de "vanguarda", onde a múltipa e transversal simultaneidade de projectos musicais é um elemento essencial da sua natureza. Uma tendência exemplarmente representada pela (des)multiplicação dos saxofonistas Ellery Eskelin (no duo com Han Bennink e no trio com Andrea Parkins e Jim Black) e Ken Vandermark (em diálogo com Joe Morris e na soma com o Aaly Trio).Uma tal concentração de nomes, só possível num festival, é também um enorme e imprevisível desafio ao público. Se é certo que numa cidade que cada vez mais cria públicos de salas em vez de públicos de música(s) o prestígio do "made in Acarte" costuma funcionar como sinónimo de sala esgotada (ou quase), a dimensão do festival e o seu "peso" e densidade musicais (muito ouvido desprevenido poderá desertar às primeiras ofensivas) funcionam como um risco acrescido. Uma coisa parece-me indiscutível: noutro espaço que não o universo gulbenkiano, este Jazz em Agosto seria um imenso e profundo abismo.A segunda mudança significativa na próxima edição do festival é o crescimento orçamental. Mesmo contando com o regresso de um patrocínio privado, as verbas envolvidas traduzem uma clara melhoria financeira face ao passado recente.Terceiro ponto de ruptura com a tradição do universo gulbenkiano: a abertura regular dos santuários da casa-mãe ao jazz, eternamente exilado num anfiteatro ao ar livre cada vez mais inabitável face aos crescentes caprichos meteorológicos das noites de Lisboa. Este ano o jazz alcança, finalmente!, o estatuto de dignidade há muito devido, tornando normal o que sempre foi excepção: os concertos do festival serão distribuídos pelo Grande Auditório (3), Auditório 2 (2), Anfiteatro ao Ar Livre (6) e Sala polivalente (7).Aplauso, ainda, para a extensão do festival ao Hot Clube de Portugal, no que promete ser um passo para a institucionalização de uma colaboração natural e útil. Uma solução que, todavia, vale como dificuldade acrescida para os pretendentes a totalistas do festival, uma vez que as duas bandas "deslocadas" para a cave da Praça da Alegria (o trio Eskelin-Parkins-Black, entre os dias 4 e 6, e o quarteto de Joe Morris, de 10 a 12) só actuam no Hot e em noites igualmente ocupadas por concertos nos palcos directos do festival. O programa inclui ainda uma conferência de Anthony Braxton sobre o seu projecto "Ghost Trance Music" (dia 2); "workshops" dirigidos por Han Bennink (bateria, dia 4, destinado a crianças dos 6 aos 10 anos), Craig Taborn (teclados electrónicos, a 9), Michael Zerang (percussão, a 10) e Joe Morris (guitarra eléctrica, a 12), todos eles para profissionais e amadores de música, tal como os "masterclasses" de piano (por Misha Mengelberg, a 5) e contrabaixo (por William Parker, a 11); exibição dos filmes "Magic Sun", de Phill Niblock, com música de Sun Ra, e "New York Eye and Ear Control", de Michael Snow, com o sax torrencial de Albert Ayler; e um encontro com mote, "Para onde vai o jazz...", participado por mais de uma dezena de críticos e divulgadores, nacionais e estrangeiros (a 8).