O terceiro sexo
Depois do falhanço do projecto "riot grrrl", a música popular assiste hoje à eclosão de uma nova leva de bandas femininas que se propõem combater a histórica prevalência masculina na indústria fonográfica. A viagem tem destino marcado: a fundação de um "terceiro sexo".
Nos últimos tempos, a música popular tem sido o palco por excelência do surgimento de uma nova ordem feminina apenas comparável àquela que no início dos anos 90 deu origem à eclosão do movimento "riot grrrl". As razões não são de agora, podendo ser explicadas em curtas e jornalísticas palavras: numa sociedade em que as mulheres continuam a lutar pela igualdade de direitos e em que o corpo feminino é cada vez mais um campo minado por estratégias publicitárias ao serviço de poderosas indústrias como o sexo ou a cosmética, não admira que ao longo da história da música popular tenham sido os artistas masculinos a dominar a consciência pública num panteão que até à data poucos ousaram desmistificar. À imagem do movimento "riot grrrl", o objectivo desta nova leva de bandas femininas passa ainda pela fundação de um designado "terceiro sexo", uma categoria assente numa distribuição justa de poder capaz de transcender a histórica dualidade entre os géneros e de transformar o "ela" num sinal de resistência mais do que numa fantasia masculina. Mas se o projecto "riot grrrl" morreu às mãos da sua própria ingenuidade, a nova luta contra a tendência misógina da indústria fonográfica tem talento de sobra para fazer passar a mensagem. É pelo menos nisso que acreditam as seguintes bandas que aqui passamos em revista. Depois de se ter tornado numa das porta-vozes por excelência do movimento "riot grrrl" como líder das Bikini Kill, Kathleen Hanna juntou-se a Sadie Benning e a Johanna Fateman para fundar as Le Tigre, um trio activista que aposta no cruzamento entre as estratégias lo-fi da música punk, a tecnologia digital barata e a retórica feminista contemporânea. A sua máxima defende que o que é experimental na arte é revolucionário na política, e é com base nela que as Le Tigre procuram desmistificar o mistério do conhecimento enciclopédico do herói tecnológico e a profanação dos ideais da pureza rock - do virtuosismo instrumental à ideia de idolatria, ou seja, "todos os mitos machistas populares que fazem a ideia do artista". "A nossa música toca o garage conceptual, troça o louvor digital e desfaz a melancolia política, numa base de repetição em que os defeitos se tornam apenas aparentes, a pirataria é aceite e o conteúdo político desafia o 'groove'." Do encontro entre as três saiu o fabuloso "Le Tigre", por muitos considerado o último grande álbum que a new wave nunca chegou a ter. Sleater-KinneyEspécie de variante cerebral da abnegação "riot grrrl", as Sleater-Kinney são das poucas bandas que sobreviveram a um movimento em que o incremento do radicalismo feminista caminhou de braço dado com a sua progressiva descredibilização. As influências expressas que Corin Tucker, Carrie Brownstein e Janet Weiss diziam sentir por bandas como as Bikini Kill, Bratmobile, Huggy Bear e Third Sex cedo deram lugar a uma exploração cada vez mais complexa das dinâmicas sónicas, e foi por essa via que as Sleater-Kinney se impuseram como um dos primeiros combos femininos a encorajar uma reavaliação crítica dos anos "riot grrrl". Entre a exploração das desigualdades entre géneros, a provocação política e ataques férreos ao consumismo, o último "All Hands On The Bad One" é até à data o álbum mais acessível deste trio de culto fundado no início dos anos 90 em Olympia, Washington."All Hands On The Bad One" (2000), Matador, distri. Zona MúsicaMais conhecida por ser um dos rostos femininos da armada digital alemã Atari Teenage Riot, Hanin Elias fundou recentemente a editora Fatal, selo subsidiário da Digital Hardcore Recordings, de Alec Empire, que se define como um núcleo de resistência reservado ao sexo feminino e destinado a mudar um mundo dominado pela lógica de poder masculina. Foi aí que Elias lançou o álbum "In Flames", registo marcado por uma intensidade extrema e em tudo derivativa das linhas gerais enunciadas pelos ATR em álbuns como "The Future Of War" ou "60 Second Wipeout". Dos últimos lançamentos da Fatal destacam-se ainda "White Heat", o álbum de estreia da também ATR Nic Endo, e "Girls Fucking Shit Up", do excelente quarteto britânico Lolita Storm.KittieConfessam que nunca dançaram seminuas no salão de baile da escola secundária e que a sua ambição não está em vender discos através da cirurgia plástica. Quarteto "teen" canadiano formado por Fallon Bowman, Talena e pelas irmãs Morgan e Mercedes Lander, as Kittie são o paradigma feminista do velho axioma popular que diz que "de pequenino se torce o pepino". Começaram por ser uma banda de versões de Nirvana e Silverchair, derivando depois para uma estética abrasiva que cruza o glam, o gótico e o nu-metal, ao bom estilo de uns bem masculinos Slipknot ou Tool. O álbum de estreia "Spit" converteu-as no primeiro produto de exportação canadiano para o século XXI. Para acabar de vez com os Körn. Mika BombNaturais de Tóquio mas radicadas desde há muito em Londres, as Mika Bomb propõem uma combinação agitadora e confrontacional de melodias pop com a agressividade do punk, tendo emergido como a última grande sensação da estética lo-fi herdada da tradição "indie" norte-americana. A sua estreia deu-se em 1998 com o explosivo "SuperSexyRazorHappyGirls", tendo este quarteto liderado por Mika regressado já este ano com o EP "Heart Attack". Dentro do espectro punk-pop, importa igualmente destacar as Rosita, quarteto britânico formado pelas dissidentes das Kenickie Mariu du Santiago e Emmy-Kate Montrose, e as Chicks, um trio irlandês que assinou com o álbum "Let Me Go", um dos mais promissores registos de estreia de 1998. "SuperSexyRazorHappyGirls" (1998), Zubi Zarreta, distri. EMI-VC