Fotografrar a palavra "não" ou a invisibilidade
"Não" é uma série de 10 fotografias muito pequenas, com o recurso a um dispositivo que permite à película captar o movimento que o fotógrafo faz com a cabeça enquanto pronuncia a palavra "não". Mas há também as imagens da série "22474", outro trabalho de José Luís Neto sobre a imposição dos presos usarem um capuz nos espaços públicos das prisões.
O trabalho de José Luís Neto, que agora entra no circuito galerístico, possui uma especificidade própria. Ao contrário da tendência contemporânea, no quadro da qual os fotógrafos tendem a trabalhar em formatos cada vez maiores, José Luís Neto trabalha em formatos pequenos (médios, quando muito), e mesmo às vezes minúsculos, como é o caso de "Irgendwo", exposto em 1998 no Arquivo Fotográfico Municipal, ou de "Não", que podemos ver agora na primeira sala da galeria Módulo, em Lisboa. Por outro lado, e para além do formato mas indissociavelmente ligado a este, a característica mais forte do seu trabalho é a pesquisa sobre a intimidade do ser individual na sua relação/relações com o(s) outro(s)."Não" é uma série de 10 fotografias muito pequenas, realizadas com um dispositivo que permite à película captar o movimento que o fotógrafo faz com a cabeça enquanto pronuncia a palavra "não". O resultado são imagens - a preto e branco - onde o vestígio concreto desse movimento induz uma situação dramática, e que tem uma origem próxima no sonho que o autor teve um dia, em que pronunciava veementemente essa palavra. Existe aqui um paralelismo entre a possível motivação inconsciente do sonho, que não podemos desbravar na sua especificidade e a configuração dramática das imagens.Na sala grande da exposição, o trabalho mais recente é também uma pesquisa, não já a partir de um acontecimento pessoal, mas a partir de um encontro com uma imagem. A imagem em causa é uma fotografia de Joshua Benoliel, existente no Arquivo Fotográfico Municipal, de 1913, ano em que foi abolido o uso obrigatório de capuzes por parte dos presos, sempre que circulassem em locais comuns do espaço prisional (e cuja lei remonta a 1889, conforme é possível saber a partir de um texto disponível na galeria, da autoria de J.J. Semedo Moreira). O título da série, "22474", refere-se ao número do negativo de Benoliel.A fotografia mostra-nos a bancada da assembleia, com os presos sentados no anfiteatro em assentos com divisórias laterais, o único sítio em que estes, devido a esta protecção visual, eram autorizados a aparecer sem capuz. Mas nesses dia, paradoxalmente, os presos têm o capuz enfiado, num gesto simbólico, já que é precisamente o momento em que foi abolido esse uso, tratando-se da sessão oficial em que essa abolição é consagrada. Na imagem de Benoliel, de pequenas dimensões (10x13cm), exposta na galeria à entrada da sala, f+bos rostos dos presos aparecem cobertos pelo capuz branco com dois buracos nos olhos.f-b Como os capuzes são muito simples, as cabeças dos presos surgem muito estranhas, assemelhando-se a cabeças de cães ou outras figuras zoomórficas, onde dois buracos negros fazem sentir um olhar infra-humano.José Luís Neto pegou nesta imagem e trabalhou cada uma dessas cabeças isoladamente, ampliando-os para uma dimensão de 35x40cm, a partir da sua dimensão original e minúscula na imagem de Benoliel. Assim, na sala da galeria, circulamos por entre uma fila de retratos fantasmagóricos, em alguns dominando o grão agora visível na ampliação. São como que retratos cegos, rostos mascarados, e que transportam consigo a estigmatização social associada à invisibilidade. O fotógrafo convoca aqui, com grande eficácia e sensibilidade, uma questão importante para o mundo contemporâneo: a da identidade social e da sua relação com a construção da imagem. Mais uma vez, tal como em "Não", a leitura do trabalho de J.L. Neto não é possível apenas por via do seu conceito, mas sobretudo, ou também, pelo impacto estético das imagens em si mesmas. As cabeças brancas com dois buracos negros, que olham o visitante, parecem encenar uma agonia que transcende a questão do isolamento social do condenado e que no século XX se transformou num excesso de visibilidade (mediática). O que é aqui convocado, a um nível diferente, são duas ideias: a da relação de José Luís Neto com a imagem de Benoliel; o sentimento de incomunicabilidade que subjaz à estigmatização social. A primeira e a segunda determinam-se mutuamente. É face a esta imagem, enigmática, de Benoliel, que continua enigmática mesmo depois de conhecermos a legenda, que o fotógrafo tece o núcleo dramático centrado não tanto nos modelos sociais como na comunicação interpessoal. Parece ser por esta razão que a ampliação da imagem a vai fazer desdobrar-se em 36 figuras emolduradas separadamente, considerando cada um como um caso, isto é, como ser em estado de privação identitária. A imagem de que parte aqui permite a José Luís Neto um trabalho extremamente subtil de encenação dos fantasmas estruturantes da personalidade no mundo contemporâneo, numa sociedade centrada no ver e no ser visto, e que concilia esse imperativo com as formas mais sofisticadas de incomunicabilidade.