Pensatempos e heteronimia

A heteronímia textual de Mia Couto conhece a adesão plena e consegue o fascínio do leitor seduzido pela possibilidade de se acrescentar como "criador" ao que lhe é proposto.

O projecto é vasto e já resultou em dois livros: "Mia Couto: Brincriação Vocabular" e "Pensatempos e Improvérbios", o mais recente, sendo escasso o intervalo de publicação, com um ontem de 99 e um hoje madrugador. Especialista em literaturas africanas de língua portuguesa, Fernanda Cavacas resolve pegar de Mia o seu fio e deambular por esse labritinto de identitária invenção própria que vem sendo a obra do autor de "Terra Sonâmbula". Do texto ou poema "em estado de dicionário", segundo a formulação drummondiana, parte Fernanda Cavacas para "a travessia de caminhos múltiplos de leituras possíveis / daquela / escrita mágica, caminhos que, ultrapassadas as palavras, vão dando o(s) sentido(s) da vida à vida". Mas esta é já a segunda etapa, a dos "Pensatempos e Improvérbios" ultrapassado que fica o registo da deriva neologística e se avança para uma sistematização e contextualização das unidades textuais, apropriação e outramento alegórico, paródico, simbólico, de mito, a partir da oralidade moçambicana e seus paralelismos em retradução para a lusa língua matricial. "Brincriação Vocabular" assume-se como primeira investida de garimpo lexical para, como diz Ana Mafalda Leite no prefácio, nos fazer "aceder ao universo lúdico de criação verbal de Mia Couto". À vasta recepção que os livros vêm tendo se terá contraposto o relativo circuito fechado deste trabalho singular, julgamos que único na abordagem sistematizada a autores de análoga desnorma linguística. E estamos a lembrar-nos de um Guimarães Rosa ou de um Luandino Vieira. Análoga, porque serão mais as disparências que as similitudes. "Brincriação Vocabular" dá, no entanto, ao mais curioso e abnegado leitor e, sobretudo, ao especialista, essa facilidade de aceder a uma primeira inventariação do desvio que se organiza com a seriedade de um dicionário, como que o legitimando em norma. Deste "excesso" se salva a promessa, revelada em "Pensatempos e Improvérbios", da próxima acontecência de uma terceira etapa, "a do reinício da leitura". A trabalholenta empresa de Fernanda Cavacas vem decorrendo sob o perfume do encantamento que a obra de Mia Couto lhe suscita. Confessa: "Seguimos na busca da intimidade do homem moçambicano projectado (mais do que reflectido) pela escrita mágica de Mia Couto e procuramos nessa interioridade o cruzamento de culturas presentes nas diversas formas de pensar o mundo, nomeadamente nos provérbios, nas máximas, nas sentenças, nas frases curtas e densas de significado que enformam relações e formam pessoas nos contextos comunitários existentes e/ou a existir". Contudo, será no fascínio deste propósito, que todo o mistério se adensa e o equívoco se instala. Apesar das conscenciosas ressalvas e reservamentos que a afirmação comporta é notória a simpatia para com a tentação demiúrgica e/ou xamânica tão característica de alguns autores destas literaturas emergentes. No caso de Moçambique , José Craveirinha é a figura emblemática, ele o profeta de "vaticínios infalíveis", segundo verso famoso e seu. Mais do que nos seus textos, Mia Couto vem também construindo essa imagem de si, ele que se confessa ser "da poesia", quando lhe perguntam na base dicotómica de géneros. Dimensão ontológica e segura da função poética, esta estratégia de discurso quer reafirmar e/ou consagrar uma legitimidade identitária num absoluto de literatura como "o real". Et pur, o que se encontra na obra do autor de "Xigubo" é tão só o homem/poeta moçambicano José Craveirinha, derivando de um cânone de portuguesa língua para a mais projectada dimensão de si nos outros vivencialmente próximos. Em Mia Couto julgo assistir-se a uma agónica experiência identitária que se autolegitima em plurais e comunicantes vasos/territórios de pertenças. Elucidariamente, Fernanda Cavacas o cita em epígrafe nas "Brincriações": "sou um escritor africano, branco e de língua portuguesa. Porque o idioma estabelece o meu território preferencial de mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana. Necessito tecer em tecido africano e só o sei fazer usando panos e linhas europeias. O gesto de bordar me ensina que estou inventando uma outra ordem e nessa ordem esses valores iniciais de nacionalidade já pouco importam". É aqui que cabe a torrente rio/afluentes e margens da heteronímia textual do homem/autor Mia Couto. Não a condição universal de um ser/homem moçambicano - mistério dos mistérios - mas a sua construção como uma das possíveis - (inevitáveis?) - emergindo das vozes, sonhos, cosmogonias, ex-centricidades e centripcidades de que é feito o tecido pensado e vivido desse espaço/tempo de povos que leva o nome de Moçambique, aglutinação de substantivo mais filiação consagrado em nome. Nesta fabulosa deriva de si com os outros Mia Couto vem demarcando um território que é tão só parte (demiurgicamente excessiva?) de um todo que simultâneamente o (se) contém) e o (se) expele, uma terceira margem de um tudo em movimento onde água, margens e texto/homem/barca em delírio por vezes se irreferenciam e se querem constituir em matriz própria, única. Um ritmado grito de solidão, uma "rake's in progress" povoada de personagens/mitemas de um verbo que se quer genesíaco para si. Numa ludicidês sem malévolas intenções se pode dizer que Mia Couto é, quiçá, o mais de uma mestiçagem onde a oscilação litigante de pertenças afro-euro ubíquas se potenciam, se paroxizam e divorcizam entre entusiasmos aderentes, perigos de modismos, méritos próprios a exigirem recusa de fórmula, assembleias consensuais. Num ensaio que merecia melhor divulgação, Gilberto Matusse estuda "A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa" para fundamentar a sua concepção de "efeito de moçambicanidade" na obra destes autores, apontando em Mia Couto um deliberado esforço de desconstrução da língua portuguesa para o conseguir Polémica e mal aceite num primeira recepção moçambicana eivada de jdavovismos a heteronímia textual de Mia Couto conhece a adesão plena e consegue o fascínio do leitor seduzido pela possibilidade de se acrescentar como "criador" ao que lhe é proposto.Num tempo de euforias globalizantes com alguns muitos solipsismos, a obra de Mia Couto vem inscrevendo linhas de demarcação sobre as quais importa reflectir e que o espaço circunstancial deste texto não permite. Fernanda Cavacas trilha um caminho próprio e acrescenta um minuncioso olhar nessa savana com "caminhos que se bifurcam".

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