Os últimos abutres em Portugal
No princípio do século, Portugal era um paraíso para os abutres. A agricultura tradicional facilitava-lhes a existência. Esses tempos estão muito distantes e não é apenas uma questão de datas no calendário. Hoje, em Portugal, os abutres surgem apenas no interior, ao longo da fronteira com a Espanha, e vivem tempos difíceis. Ao ponto de a grande interrogação que se coloca ser a de se saber até quando resistirão os poucos que restam?
"Abutres! Em Portugal ?!" A pergunta-exclamação não é invulgar: resulta do mero desconhecimento de que as grandes aves planam sobre território português. Para os "ignorantes", a resposta é "sim". Em breve, se nada mudar, será um triste "não".Os números não autorizam dúvidas para descrever a situação actual dos abutres em Portugal: grave. Depois da extinção do quebra-ossos ("Gypaetus barbatus"), no final do século passado, restam três espécies e estamos confrontados com o risco de desaparecimento do abutre-preto e do abutre do Egipto, que se encontra em regressão. Só a população de grifos parece estável. O número de casais nidificantes efectivos para estas espécies é muito reduzido: cerca de quatrocentos para os grifos, menos de uma centena (75 a 90) para o abutre do Egipto. Para o abutre-preto, uma dúvida: entre 0 e 1! É que em relação a esta espécie desconhece-se actualmente a existência de qualquer casal nidificante, muito embora ela seja regularmente observada em território português; em geral, são aves provenientes de Espanha.Os abutres são aves de grande envergadura que se alimentam de cadáveres de animais, razão pela qual são denominadas necrófagas. São planadoras por excelência, incapazes de voar grandes distâncias através da força motriz do bater das asas. Utilizam, por isso, a força do vento e as térmicas, correntes de ar ascendente que lhes permitem percorrer longas distâncias planando e assim prospectarem os seus grandes territórios em busca de alimento. Essencial para a descoberta do alimento é uma visão altamente desenvolvida, que lhes permite descobrir o corpo de um animal de médio porte à distância de três quilómetros, segundo afirmam alguns autores. Contudo, uma grande parte do alimento é descoberto graças a pequenas aves necrófagas como os corvídeos e milhafres, que constituem para os abutres preciosos auxiliares.As três espécies existentes em Portugal - o abutre-preto ("Aegyps monachus"), o grifo ("Gyps fulvus") e o abutre do Egipto ("Neophron percnopterus") - vivem sobretudo no interior, em Trás-os-Montes, Beiras e Alentejo. De um modo geral, o que as distingue é o tamanho e a cor da plumagem, sendo também os seus modos de vida relativamente diferentes. O abutre-preto é o de maiores dimensões e o de plumagem mais escura; o abutre do Egipto o mais pequeno e o de plumagem mais clara; o grifo é ligeiramente mais pequeno do que o abutre-preto e, de entre eles, é o que possui hábitos mais gregários, sendo uma espécie rupícola, associada a escarpas e outras áreas rochosas. O mesmo acontece com o abutre do Egipto, embora este seja uma espécie mais solitária. O abutre-preto é o único com hábitos florestais. Em suma, as três espécies partilham o mesmo espaço e alimento, mas cada uma com adaptações diferentes.No início do século, Portugal poderia considerar-se um paraíso para os abutres. De Norte a Sul, existiam inúmeros locais com importantes populações destas aves necrófagas, a que o alimento não faltava, uma vez que a agricultura praticada na época era baseada na força animal e na pastorícia de transumância. "Abitureiras" é o topónimo com que vulgarmente a população denomina os locais frequentados por abutres: afloramentos rochosos, vales ou mesmo povoações sobranceiras a estes locais. Toponímia que em muitos locais já não faz sentido: é que os abutres desapareceram.O declínio começou com a modernização do sector agrícola. A substituição dos animais pelas máquinas agrícolas, a criação do gado em estábulos e melhores condições de higiene e sanidade animal eliminaram a principal fonte de alimento dos abutres. Em paralelo, a "guerra" declarada aos predadores por caçadores e agricultores, com o envenenamento e a destruição de ninhos, ditou e dita ainda a sentença final para muitos abutres.Estarão os abutres condenados a desaparecer? A resposta certamente dependerá de nós. A conservação dos últimos abutres passa pelo restabelecimento das condições necessárias à sua sobrevivência, com as necessárias adaptações às transformações que ocorreram naturalmente. Este é um trabalho que tem vindo a ser desenvolvido há já alguns anos por países europeus e que, no caso português, seria particularmente facilitado devido à importância e estabilidade das populações de abutres espanholas.São três as condições básicas para uma população de abutres poder prosperar numa determinada região: locais propícios à formação de correntes térmicas, recursos alimentares anuais regulares e tranquilidade nos locais de cria e repouso. Como se depreende, as duas últimas são susceptíveis de intervenção directa por parte do homem.A criação de alimentadores, locais onde são depositados cadáveres de animais provenientes de explorações agrícolas e desperdícios de matadouros, é sem dúvida a melhor e mais simples forma de fornecer alimento regular às aves necrófagas, muito embora possa ser considerado um processo pouco natural. Há já alguns anos, associações ecologistas iniciaram um programa nesse sentido, chegou mesmo a criar-se legislação para o efeito, mas o programa não teve êxito. As acções realizadas não ultrapassaram as boas intenções e a falta de meios depressa originou que o que deveria ser uma alimentação contínua e regular aos abutres se tornasse numa alimentação esporádica ou mesmo inexistente. Actualmente, não existem mais do que dois ou três locais em todo o interior do país onde é depositado regularmente alimento para os abutres, o que se revela manifestamente insuficiente para recuperar populações em regressão.Numa altura em que o turismo de Natureza tem um forte incremento em Portugal, a criação de alimentadores, ao nível concelhio, ao longo de todo o interior, até podia criar pontos de interesse turístico, desde que a sua localização fosse devidamente preparada para o efeito, salvaguardando por exemplo um ambiente de tranquilidade.