Teatro da morte
Panos, trapos, veludos. Destroços. Restos. Cordas. E os actores, 17. Paulo Claro, Ivo Canelas ou Miguel Borges. A marca de Silva Melo numa nova criação: "Navio dos Negros", na Culturgest.
Não é que Jorge Silva Melo tenha de repente deixado de gostar de teatro ou de actores - aliás, só gosta de actores. Simplesmente, o que lhe interessa agora é o irrepresentável, a literatura, a narrativa; é o palco - "uns panos, uns trapos, veludos, cadeiras, umas luzes, mais panos, umas madeiras, uns cabos" - como espaço onde a palavra pode divagar livremente. E é por isso que "Navio dos Negros", a sua nova criação para os Artistas Unidos (estreia na Culturgest dia 29) é assim: como um livro ilustrado aberto no meio de um palco onde as personagens e situações se materializam como se estivessem no imaginário de quem as lê.Ofereça-se então primeiro o livro: "Benito Cereno", novela pós-"Moby Dick" que fez Herman Melville ser acusado de falta de estilo e absoluta preguiça. É "uma pena a novela estar inacabada com uma série de documentos por trabalhar no final", alegou, ao recusar a sua publicação, o editor da mesma revista onde anonimamente surgira pouco antes "O Escrivão Bartleby". Doente, com graves crises de reumatismo, Melville estava no entanto seguro da pertinência das suas opções literárias e a resposta foi cáustica: "Há quanto muito cinco críticos na América e a maior parte está a dormir". Tinha razão.Ao acrescentar no final do seu texto de pendor quase romanesco uma série de depoimentos e actas de tribunal aparentemente por trabalhar e que finalmente estabeleciam a veracidade dos factos ocorridos a bordo do veleiro San Dominick, Melville dotava "Benito Cereno" de uma extemporânea modernidade. Aquela que actualmente permite a Silva Melo trabalhá-la, torná-la outra, sua.Estão lá os habituais panos, trapos, veludos, que agora são o céu, o mar, as nuvens, as gaivotas, as andorinhas, tecidos crus que são as velas rotas de um barco ao abandono. Um leme. Telas e entretelas que são puxadas, esticadas, estendidas e recolhidas, que são dobradas e rasgadas, que deixam entrar e sair, mostrar e esconder, saber e adivinhar. Cadeiras, muitas, que são o porto de Santa Maria, ilha isolada na costa do Chile, que são o convés de um misterioso veleiro que entretanto chega ou de um barco de pesca à foca que já lá estava, alternadamente. Destroços. Restos. Cordas. E os actores.Paulo Claro é Amasa Delano, bom americano, inocente e bem intencionado, John Wayne por nascer em 1799, e pronuncia alentejana. Voz arrastada, por vezes hesitante, por vezes afirmativa. Olhar brilhante, azul, a antecipar enredos que não consegue deslindar, a olhar intrigado o horizonte de um mar que Melville descreveu cinzento, parado, chumbo derretido. "Bandos cinzentos de pássaros misturavam-se com rolos cinzentos de nuvens inquietas e brincavam com elas, aflorando as águas num voo caprichoso e baixo, como andorinhas que rasam as planuras antes da tempestade. Sombras presentes pressagiavam outras sombras futuras e mais densas." As sombras trazidas pelo negro veleiro (mastros, o cordame e paveses imundos, sombrios festões de algas viscosas e bivalves, panos a tapar a decadência) do espanhol Benito Cereno.Ivo Canelas, de regresso aos palcos, é Benito Cereno, camisa branca de folhos, olhar ensadecido, distante, vazio, de capitão que se perdeu no mar. Titubeia, vacila, quase cai e levantam-no, treme, desiste, arrasta-se. Tem um segredo que quer gritar mas cala, falando. Os negros misteriosos (actores brancos de cabeça grotescamente encarapuçada) que povoam o seu navio continuam a afiar os machados numa cantilena de morte. Somos os quatro pretos grisalhos,/de cabeças semelhando negros cumes/ de salgueiros recamados de cuscuta. / Estamos deitados,/ deitados/ esfinges,/ um sobre o serviola de estibordo,/ outro sobre o de bombordo./ Na mão, os velhos cabos/ não cochados que retalhamos/ para fazer estopa./ E cantamos/ um canto seguido, monótono e baixo,/ uma marcha/ fúnebre.Somos os outros seis negros/ de pernas cruzadas/ afastados uns dos outros por intervalos regulares./ Nas mãos/ machados ferrujentos/ que areamos/ como moços de cozinha/ com um tijolo e um trapo./ Não falamos com ninguém,/ não emitimos/ o mais leve murmúrio/ a não ser quando/ de vez em quando/ cruzamos dois a dois/ os machados como címbalos/ com um ruído bárbaro.Amasa Delano não tem medo, mas questiona-se. Que esconde Benito Cereno na sua presença? Que tenta revelar-lhe e não pode? Loucura? Que estranha influência têm sobre ele os negros, em especial Babo (Américo Silva), agarrado ao seu corpo, às suas pernas, como uma lapa incómoda que o retém, que o atrasa, que o suga? As perguntas correm velozes, mas não entre as personagens, não em diálogos. Desfilam palavra por palavra, pesadas e medidas, narrativa lenta mas colorida, pela voz dos actores quase sempre tornados narradores. "Uma das coisas que me aborrece muito ver no teatro é as pessoas a conversar umas com as outras", diz Silva Melo, "acho uma coisa muito entediante, porque eu sei que elas sabem que estamos ali, sentados em frente delas. Não me apetece mostrar-vos como tudo se passou. Apetece-me a amplidão da palavra. Prefiro contar, contar com a cena e com a palavra, deixar-vos o redemoinho da narrativa". Porque "tudo isto é um teatro", afirma. Fala do navio, fala das personagens, mas fala sobretudo de Benito Sereno/Ivo Canelas que representa "um teatro da morte". Que não está louco mas que agoniza sob o jugo dos escravos revoltados que querem voltar ao Senegal de onde ele os roubou, que querem subjugar também Amasa Delano e a sua tripulação. Fala-se aqui, explica Silva Melo de "como é que um bom homem protestante, fundador da américa [Amaso] ainda se encontra com o último representante da sociedade esclavagista [Cereno], um homem que vem do fim de um outro mundo, que vem de outros tempos, que parece um fantasma". Mas fala-se também da perplexidade de Melville, um homem do final so século XIX ante o avanço do mundo, acrescenta. "Há uma frase do Melville a que acho muita graça que é 'Se o esclavagista pode matar um escravo com um chicote, um capitalista pode mata-lo à fome'". "Mas a escravatura acabou?", pergunta Silva Melo. "Quem são estes letões, ucranianos, russos, sérvios, croatas, montenegrinos, albanezes que de olhos azuis nos olham, musculados e silenciosos, comprados sem passaporte por sub-empreiteiros que os instalam nos contentores das obras e que de vez em quando entrevemos nos telejornais, de mãos tapando a cabeça para lhes não vermos os olhos entrando em autocarros e expulsos das fronteiras"?São talvez Miguel Borges, mãos enfiadas nos bolsos de um fato domingueiro e palavras roubadas a uma notícia de jornal, resumo de uma vida de homem comprado e vendido para construir estradas, piscinas e vivendas no Alentejo. Ou Daniel Martinho, o único verdadeiro negro presente, que fala de aeroportos que ajudou a reparar, os mesmo onde o fazem esperar, dias e dias em pequenas salas, até poder construir "expos".