O corpo enquanto mercadoria

Com o projecto "Corpo em Trânsito 1.O", o luso-francês Didier Fiuza Faustino leva até à sétima mostra de arquitectura da Bienal de Veneza o problema da emigração clandestina. Comissariada por Massimiliano Fuksas, a exposição obedece ao tema "Cidade: Menos Estética, Mais Ética". Uma forma de chamar a atenção para uma sociedade em rápida mutação.

A sétima edição da mostra de arquitectura da Bienal de Veneza abre hoje as suas portas ao público. Comissariada por Massimiliano Fuksas, a exposição obedece ao tema "Cidade: Menos Estética, Mais Ética". Entre os participantes encontra-se o luso-francês Didier Fiuza Faustino, 30 anos, que apresenta o projecto polémico "Corpo em Trânsito 1.0", uma resposta às condições de circulação dos emigrantes. Um contentor que abriga o humano das agressões exteriores. E lhe devolve a dignidade perdida algures entre querelas fronteiriças e trabalhos precários. "Action now, riot" ("acção imediata, revolta"), propõe o arquitecto.O projecto de Didier Faustino tinha como ponto de partida a realização de uma "performance" entre Paris, Lisboa e Veneza. A ideia era viajar de avião dentro do contentor, que seria colocado no espaço destinado ao transporte de bagagens e mercadorias. À chegada, o colectivo de artistas italiano Stalker iria esperar o arquitecto ao aeroporto e levá-lo-ia, sempre no interior do invólucro, até ao local onde decorre a Bienal. A intervenção teve de ser abandonada devido à recusa das companhias aéreas em autorizar o transporte do artista nas condições propostas - a responsabilidade do piloto era a última razão evocada para a recusa.A intervenção, embora frustrada, revela a incapacidade dos detentores do espaço aéreo em lidarem com o corpo enquanto mercadoria, uma realidade que, na opinião de Faustino, devia ser assumida plenamente. É que o humano está cada vez mais distante de um mundo onde imperam novas e muitas vezes camufladas formas de exploração. Resta então expor um "contentor para indivíduo, arquitectura corporal, artefacto de reflexão", como nota o franco-português no texto de apresentação do seu projecto. Trata-se pois de uma obra política, esta; ao denunciar a situação de risco vivida pelos emigrantes que utilizam meios de transporte improvisados na tentativa de escapar à pobreza, ela materializa criticamente a interrogação sobre o papel do arquitecto na sociedade contemporânea. A morte por congelamento de dois africanos, que, agarrados às rodas de um avião, tentaram superar as fronteiras impostas pelas leis humanas, activou a necessidade do arquitecto projectar construir uma espécie "estojo para corpos em situação de perigo". "É necessário fazer algo", sublinha Didier Faustino, "expor o ridículo de uma sociedade que transporta animais domésticos dentro de caixas e deixa morrer os seus semelhantes nos porões de um qualquer navio". Filho de emigrantes portugueses, residente em Paris, o artista é particularmente sensível aos problemas do outro, do estrangeiro. Uma "performance" que pode ser cruzada com "Corpo em Trânsito 1.0" é "I Like America and America Likes Me", protagonizada por Joseph Beuys, em 1974 - o alemão viajou entre Berlim e Nova Iorque, onde, durante uma semana partilhou a galeria René Block com um coiote; o transporte entre o aeroporto e o local da intervenção foi feito de ambulância, dado que o artista tinha posto como condição a recusa de pisar solo americano. Se Beuys pode ser aqui citado, outras são as influências que Didier Faustino considera essenciais para o seu trabalho: a "anarquitectura" de Gordon Matta-Clark, o salto para o vazio de Yves Klein, as "arquitecturas viciosas" propostas por Hervé Guibert, os Archigram, os espectáculos dos japoneses Dumb Type, a música "digital-hardcore" dos Atari Teenage Riot e o texto "A Queda", de Albert Camus (este devido à errância de um dos personagens pela cidade). O arquitecto sintetiza essas referências no neologismo "mesarchitectures", que se pode traduzir por "as minhas aventuras arquitectónicas". Alguns dos projectos anteriores de Faustino podem ser obervados, até ao próximo dia 25, num dos mais significativos eventos dedicados à arquitectura contemporânea, o "ArchiLab 2000", Encontros Internacionais de Arquitectura de Orléans, França. Ali, o luso-francês mostra uma série de obras não edificadas (como a embaixada de Portugal em Berlim); exercícios de questionamento sistemático do cliente e das suas intenções contratuais. As noções de vertigem, de instabilidade e de acidente são também exploradas pelo arquitecto, uma forma de, por um lado, acordar no corpo a percepção do espaço envolvente e, por outro, questionar a excessiva decoração de muitos dos actuais edifícios. Em "A Casa de Alice" (1998-1999), Faustino quis criar um espaço relacional, um improvável território de desejos. Com essa intenção propôs ocupar o espaço entre duas habitações com uma superfície formada por duas fitas moebius interrompidas, que seriam construídas em tecido. As escalas do urbano, do edificado e do humano cruzam-se numa série de deslocamentos que partem quer do entendimento da roupa como primeira arquitectura do homem, quer da leitura que Walt Disney faz do livro de Lewis Carrol. Uma vez mais, aquilo que está em causa é o corpo constrangido, contaminado, pelos imóveis. Outra obra que merece um destaque particular é "Personal Billboard an Urban Peep Show" (1999), uma "casa individual dotada de um ecrã gigante que difunde [para o exterior] sequências vídeo dos seus ocupantes".Num dos seus projectos mais recentes - "Urban Rhizome" (1999) -, Faustino respondeu à proposta de construir um hotel para extraterrestres na cidade de Roswell, Novo México, Estados Unidos, quer a partir do ponto de vista do estrangeiro (a "comunidade que estorva"), quer das possibilidades de um "puzzle" formado por peças idênticas. Além de recusar aqui a noção de individualidade, o arquitecto pretende comentar a expansão das actividades de muitos dos seus colegas de profissão à escala do urbano. É que, para o luso-francês, há um paradoxo que urge enfrentar urgentemente: "prisioneiras voluntárias da arquitectura, as pessoas têm a liberdade total" - a imagem cruza a infinitude espacial de "THX 1138:4EB/ Labirinto Electrónico", de George Lucas com o pensamento de Rem Koolhaas.Em "Cidade: Menos Estética, Mais Ética", Fuksas tenta exprimir o "profundo mal-estar de uma sociedade em rápida transformação em cujos dados e coordenadas de referência de um arquitecto se alteraram completamente". Entre os participantes da VII Bienal de Veneza podem destacar-se alguns dos nomes que respondem criticamente: Vito Acconci, Shigeru Ban, Peter Cook, Coop Himmelblau, Elisabeth Diller + Ricardo Scofidio, Zaha Hadid, Arata Isozaki, Toyo Ito, METÁPOLIS MVRDV, Jean Nouvel (que venceu o Leão de Ouro), Renzo Piano, Stalker, Bernard Tschumi, Ben van Berkel, Wiel Arets & Associates Bv e Krysztof Wodiczko. Convidado pelo comissário da mostra, Didier Faustino - co-editor da revista Número e co-fundador do LAPS (Laboratório de Arquitectura Performance e Sabotagens) - propõe a "experiência do frágil" como forma de superar "a pressão da hiper-realidade e a "overdose informativa".

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