Sobre "adopções homossexuais"

A discussão sobre "adopções homossexuais" revela bem a confusão instalada. É certo que o tema se presta - para todos nós - à polémica: afinal de contas junta duas grandes preocupações da nossa sociedade e cultura: a primazia que atribuímos às crianças e seus direitos; e a ambiguidade com que lidamos com as sexualidades alternativas. Começaria justamente por aqui: é que os dois temas situam-se em planos distintos. A primazia que atribuimos às crianças e seus direitos é não só nobre, como necessária. Vincamo-la tanto mais quanto reconhecemos que os direitos das crianças não estão garantidos na prática. E que qualquer coisa corre menos bem no domínio da adopção. Já a ambiguidade com que lidamos com a homossexualidade é, a meu ver, preocupante. Um discurso vagamente tolerante sobre as opções (e, segundo alguns, os "destinos") sexuais de cada um, acaba sempre com ressalvas: ora o casal do mesmo sexo não pode ser equiparado a um de sexos diferentes por pôr em causa a "instituição familiar"; ora as crianças não devem ser adoptadas por casais do mesmo sexo porque vão perder a referência bipolar da figura materna e paterna. Qualquer pessoa minimamente treinada em retórica sabe que a ressalva destrói a parte tolerante da afirmação, permitindo ainda a desculpabilização disso. O outro problema que surge nestes debates é o recurso a especialistas. Este recurso peca normalmente por dogmatismo ou por defeito. Por dogmatismo, quando a autoridade científica é chamada a declarar "a verdade" (por natureza impossível em disciplinas em que várias teorias se confrontam). Por defeito, quando se escolhem especialistas de certas áreas em detrimento de outras. No primeiro caso, está a esquecer-se aquilo que até os profissionais das ciências duras reconhecem: a natureza socialmente construída do conhecimento científico (mutável, com influências ideológicas e políticas, e feita em instituições). No segundo caso, está a esquecer-se que os fenómenos sociais só podem ser abordados de forma pluridisciplinar. Neste caso, não é só a psique das crianças que está em causa. É também a diversidade de formas de relações e instituições sociais que podem existir numa sociedade e que são, pela sua natureza contingente e histórica, sempre mutáveis. E que, quanto mais diversas, mais plurais vão tornar as ditas psiques. Para mais, quando há vários interesses em disputa numa sociedade (e há sempre, e em todas), os assuntos passam a ser políticos, isto é, dependentes das vontades de mudar, conservar ou retroceder. Isso é a política, não os amendoins dos agendamentos parlamentares.Na questão "adopções homossexuais" (infelicíssima expressão) há que dividir os campos: por um lado a adopção, por outro os homossexuais. Por um lado a questão inalienável de que os direitos das crianças são soberanos. Por outro a questão da igualdade perante a lei, na letra e na prática. Na primeira questão há que olhar atentamente para o panorama da adopção em Portugal: quantas crianças por adoptar? Vindas de onde? Com que características? Funcionam os serviços de adopção bem? Que políticas (e com que pressupostos ideológicos) accionam as selecções de futuros pais e mães? Na segunda questão há que olhar atentamente para as consciências e para a coerência dos argumentos que se colocam: devem ou não os homossexuais não ser discriminados perante a lei? E aceitam-se excepções nessa regra (que nem sequer está estabelecida em Portugal)? Aceitando-se excepções não se está a desencobrir uma inclinação preconceituosa sobre todas as pessoas concretas que cabem na categoria "homossexual"?Tudo o que se tem vindo a propor - largos segmentos do movimento gay, o Bloco de Esquerda e alguns opinion-makers - situa-se nos dois planos acima enunciados, e não num pântano semântico sobre uma suposta proposta de "adopções homossexuais". Elucidadas as visões do mundo e as vontades políticas nos dois planos, a prática e a aplicação é (deveria ser) toda uma outra coisa: a escolha dos pais por critérios de capacidade financeira mínima, motivação positiva para o exercício da maternidade, da paternidade ou da tutela de crianças, e a capacidade para dar essas "coisas" básicas e tão fora de moda que são o amor e o carinho. Algo que só se pode dar com liberdade e receber como direito quando se sente que se é cidadão completo - coisa que nem as crianças por adoptar, nem os eventuais (e muito possivelmente poucos) gays candidatos à adopção são no actual momento. Não por defeito da sua "natureza" (no caso dos gays) ou por "azares do destino" (no caso das crianças por adoptar).Digo sempre a mesma coisa, bem sei, mas não consigo esquecer: quando a Commonwealth of Massachussets quis revogar as adopções por casais gay, vi centenas de crianças numa manifestação de rua gritando "Não nos tirem os nossos pais!". A partir daí comecei a pensar. Um exercício difícil no nosso país.*Antropólogo, membro da Comissão Permanente do Bloco de Esquerda

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