Quem matou D. João VI?
O mistério sobre a morte do rei D. João VI parece estar esclarecido: foi assassinado com arsénio. É o primeiro regicídio da nossa História. O de D. Carlos passa, agora, a ser o segundo. À pergunta óbvia de um detective - a quem serviu o crime - a resposta aponta para os miguelistas.
Afinal, quem matou o rei D. João VI? É a pergunta que se segue à afirmação recente, por três cientistas portugueses, de que D. João VI morreu envenenado com arsénio. Sendo aquele período da história do século XIX tão conturbado, quem deverá pôr-se na lista de suspeitos - os liberais ou os absolutistas, encabeçados pelos dois filhos de D. João VI, D. Pedro e D. Miguel? Tanto mais que a morte do rei desencadeou um período de guerra civil entre liberais e miguelistas.Que alguém matou o monarca, o arqueólogo Fernando Rodrigues Ferreira, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, não tem grandes dúvidas. Nem os restantes membros da equipa que chegaram à conclusão de envenenamento com arsénio, depois do estudo das vísceras, a historiadora Maria da Conceição Neves, da mesma associação, e o anatomo-patologista e médico legista Armando Santinho Cunha, do Instituto de Medicina Legal de Lisboa. "Efectivamente, o senhor D. João VI foi morto por uma intoxicação por arsénio, provavelmente numa só toma e sem possibilidade de recuperação", contou Rodrigues Ferreira, ao fim da tarde de quarta-feira, numa sessão pública de apresentação dos dados em Lisboa. Santinho Cunha reforça aquela afirmação, baseando-se na concentração de arsénio detectada nas vísceras de D. João VI: "A causa da morte já a temos - foi o arsénio", disse ao PÚBLICO. "Ele teve de facto uma intoxicação pelo arsénio. Há uma diferença profunda entre a quantidade de arsénio que se encontra numa pessoa normal e a das vísceras de D. João VI." Muitos rumores correram desde a morte de D. João VI, a 10 de Março de 1826, em Lisboa, quando completava quase 59 anos. Houve logo quem defendesse quer a tese do assassinato, quer a de uma morte natural. As dúvidas persistiram e os textos dos historiadores do nosso século reflectem-nas. NaHistória de Portugal dirigida por João Medina diz-se que a morte do rei ocorreu "em circunstâncias pouco claras". A de Veríssimo Serrão nega o assassínio: "A tese do envenenamento, a que a facção absolutista deu inteiro crédito está hoje, com bons argumentos, posta de lado. O monarca sofria de uma descompensação cardíaca que lhe provocou um edema generalizado". O historiador Oliveira Marques também não andou longe desta interpretação, referindo-se às duas forças ideológicas em forte confronto: "Não faltaram boatos de que fora vítima de veneno, atribuído tanto a absolutistas quanto a liberais, o que hoje parece fora de questão."Esta versão que exclui o envenenamento é desmentida, porém, pelo estudo das vísceras de D. João VI - detectaram-se concentrações de arsénio 130 vezes superiores ao normal. Esta história das vísceras começa com sua descoberta num pote chinês, guardado, por sua vez, num pequeno caixão de madeira no chão da Capela dos Meninos de Palhavã, no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa. Ao embalsamar o corpo do rei, retiram-lhe as vísceras e colocaram-nas no pote. O corpo está no Panteão dos Reis da Dinastia de Bragança, no Mosteiro de São Vicente de Fora, e sabia-se que o pote tinha ido para o chão da Capela dos Meninos de Palhavã. Uma lápide indica isso mesmo, mas não se sabia se ainda lá estaria. O acaso teve o seu papel. Durante o restauro de São Vicente de Fora, Rodrigues Ferreira, que era o arqueólogo responsável pelas obras, encontrou dois potes com vísceras de um príncipe. Pôs a hipótese de as de D. João VI também lá estarem. Os três cientistas terminaram agora o estudo às vísceras, compostas por bocadinhos do intestino delgado e talvez de fígado.As vísceras foram analisadas quimicamente no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, à procura de arsénio, veneno usado na época. Obtiveram-se valores entre cinco e dez miligramas por quilo. "Dez miligramas matam qualquer pessoa, e de forma aguda", diz Santinho Cunha. Como a equipa calcula que D. João VI teria uns 80 quilos, no organismo do rei havia entre 400 e 800 miligramas de arsénio. Para matar uma pessoa de 80 quilos, frisa Rodrigues Ferreira, bastam 120 miligramas... Mas Santinho Cunha situa a intoxicação de D. João VI entre subaguda e aguda - a partir das concentrações de arsénio encontradas nas vísceras, mas também dos boletins médicos publicados na "Gazeta de Lisboa", entre 6 e 11 de Março de 1826, e dos relatos do cronista do reino, frei Claúdio da Conceição, sobre a dieta e os sintomas do rei. "Baseando-me na sintomatologia exposta por frei Cláudio da Conceição, aponto para uma intoxicação subaguda. Ele tinha diarreia abundante e, ao mesmo tempo, convulsões ligadas à desidratação que acompanham situações de intoxicação arsenical."Santinho Cunha inclina-se para a intoxicação subaguda: "Libertou através dos vómitos parte do arsénio e provavelmente baixou a quantidade de arsénio, o que lhe permitiu resistir alguns dias e com a recuperação a meio da doença, própria de uma intoxicação subaguda. Na intoxicação aguda, morre-se no máximo em dois dias, na subaguda em dez dias". Quem matou D. João VI é já outra história, muito mais complicada. O nome dos autores continuará, na opinião de alguns investigadores ouvidos pelo PÚBLICO, no segredo dos deuses. Naquela altura, Portugal vivia um período político muito conturbado. Sobre quem beneficiaria com o crime, o historiador Vasco Pulido Valente, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS), lembra que, com a morte de D. João VI, os miguelistas ficaram contentes e os liberais aterrados: "Quem tinha interesse em matar eram os miguelistas e quem espalha o boato são fontes miguelistas." Porquê? "Porque D. João VI era um moderado e por causa dos seu planos dinásticos, que se centravam em D. Pedro IV. Isso era odioso à facção miguelista. D. Pedro IV já tinha dado ao Brasil uma Carta Constitucional, era impossível que também não o fizesse em Portugal." A ideia de D. João VI, depois da independência do Brasil, era unir os reinos de Portugal e do Brasil sob a mesma pessoa. "D. Pedro IV acumularia as duas coroas. Os miguelistas queriam impedir a reunificação que levaria D. Pedro IV à coroa de Portugal e depois traria a Carta Constitucional". O historiador Nuno Monteiro, também do ICS, acha que dificilmente se saberá quem matou o rei. "Os boatos que circularam na altura foram tanto de absolutistas contra liberais como de liberais contra absolutistas, embora prevaleça a ideia de que teriam sido ultra-absolutistas, ou eventualmente Carlota Joaquina, a envenenar D. João VI. Mas os assassinatos políticos são muito difíceis de desmontar, são mais encapotados que os crimes correntes. Dificilmente se irá saber quem foi e como foi - podemos ter suspeitas." Nuno Monteiro sublinha que o rei morre numa situação de grande indefinição, em que o último acto político é a nomeação da filha, Isabel Maria, como regente até à chegada sucessor que se supõe ser D. Pedro. "É um contexto de extrema radicalização política. A morte de D. João VI é seguida de guerra intermitente, o país entra numa convulsão radical."Para quem ainda tiver dúvidas sobre o envenanamento, a equipa põe as vísceras à disposição para contra-análises nos próximos seis meses. Depois - dentro um frasquinho de plástico transparente, conservadas em álcool - os restos voltarão para o pote. Vasco Pulido Valente, por exemplo, duvida da autenticidade das vísceras e é da opinião que deveriam ser feitos testes de ADN (património genético) comparativos, ou seja, ver o parentesco entre os tecidos analisados e o ADN de D. Duarte de Bragança. "No século XIX roubava-se as lápides e remexiam-se os túmulos como no Egipto". Ao que Rodrigues Ferreira responde: "Estava lá a pedra em cima. Não temos dúvidas". Mesmo que o ADN das vísceras fosse suficiente para os testes, o que não parece ser o caso, diz Santinho Cunha, é provável que nada se concluísse sobre a paternidade biológica de D. João VI. Não se pode esquecer o pormenor das infidelidades. "Tinha de se ir buscar ADN ao suposto pai e suposta mãe - e por aí adiante..."*com Isabel Salema