A televisão global
Faz hoje 20 anos que nasceu um dos símbolos mais poderosos da cultura norte-americana. A CNN nasceu deficitária mas conquistou aos poucos o poder de moldar a forma como as pessoas vêem o mundo: soube estar sempre no sítio certo à hora certa. É a televisão preferida dos chefes de Estado. E uma referência incontornável do admirável mundo novo da informação "on line".
"Turner, você está a criar a aldeia global!", terá exclamado um entusiasmado Marshall McLuhan a propósito da revolucionária Cable News Network, o projecto megalómano que o empresário de televisão Ted Turner conseguiu pôr no ar às 18h00 do dia 1 de Junho de 1980 e que o mundo se habituou a conhecer através da sigla CNN. Passam hoje exactamente 20 anos sobre o início das emissões do primeiro canal televisivo exclusivamente dedicado à informação a que fez sentido chamar global. Tempo suficiente para transformar uma estação que esteve sempre antes das outras em cima do acontecimento num dos mais poderosos símbolos da cultura norte-americana. Um pouco como a sua conterrânea Coca-Cola, que também nasceu em Atlanta.A CNN aproveita para comemorar a data em tom de auto-elogio: o braço internacional da cadeia - que actualmente já conta com seis canais e emite conteúdos em onze idiomas - será objecto de uma reportagem especial onde há espaço para uma galeria dos melhores momentos de uma história com 20 anos. A autobiografia percorre duas décadas que, assegura a CNN, "transformaram para sempre o modo como o mundo recebe a informação". Sobretudo a partir de 1985, data em que a cadeia passou a emitir por satélite para todo o planeta, 24 horas por dia, sob a chancela da CNN International. Ao todo, cerca de 230 milhões de lares recebem a estação, que o bilião de telespectadores conquistados pelos infatigáveis directos da Guerra do Golfo transformaram num verdadeiro império multimédia: a cadeia CNN contabiliza já 4 mil assalariados, 37 delegações e 175 mil horas de emissão.O verdadeiro alcance da revolução operada pela CNN talvez não se meça apenas na sobrevalorização do directo, que hoje caracteriza parte substancial da informação televisiva, e na inspiração fornecida aos canais noticiosos que surgiram desde então. A política interna americana teve de adaptar-se à postura descomprometida de uma estação que começou débil e deficitária, mas que acabou por conseguir impor-se nas "pools" autorizadas a cobrir as reservadíssimas conferências de imprensa da Casa Branca e do Congresso, graças a uma inultrapassável habilidade para estar no sítio certo à hora certa. Quando o vaivém espacial Challenger explodiu, em 1986, a CNN era a única estação americana que estava a trasmitir em directo do Cabo Canaveral. Foi a primeira de muitas jogadas de antecipação - a que se juntaram o primeiro raide aéreo sobre Bagdad, as alegações do caso Irão-Contras, o julgamento de O. J. Simpson e, mais recentemente, a divulgação on-line do relatório Starr - que fizeram da CNN a televisão preferida dos chefes de Estado. São vários os casos de fidelidade que envolvem figuras públicas: diz-se que Henry Kissinger nunca viaja sem uma lista exaustiva dos hóteis que recebem o sinal da cadeia, e que, há alguns anos atrás, Lech Walesa terá feito uma encomenda de dez "sweat-shirts" com o logótipo da CNN. Claro que há episódios bem mais sintomáticos da relevância estratégica da cadeia. Ao que consta, o rei da Arábia Saudita foi alertado para o início da operação "Tempestade no Deserto" por uma reportagem da CNN...A universalidade da CNN fez-se à custa de atributos como a rapidez e o rigor informativos, mas também mercê de uma autonomia que lhe permitiu actuar como "telefone vermelho" em momentos particularmente delicados da conjuntura internacional. É essa, pelo menos, a opinião de Francisco Rui Cádima, docente da Universidade Nova de Lisboa e especialista em televisão: "A grande novidade da CNN é a isenção que conseguiu alcançar, sobretudo em termos de política externa. A CNN transmitiu coisas que mais ninguém ousou, como a entrevista ao Saddam Hussein em plena Guerra do Golfo", recorda. Como efeito positivo da CNN, que, por contágio, foi alterando a informação televisiva, aponta "o discurso informativo asséptico e a postura independente dos pólos do poder e dos porta-vozes oficiais". Que reverteram em favor de um estatuto imbatível: "A CNN é uma espécie de último reduto para o diálogo e para o entendimento em situações-limite como a Guerra do Golfo e o bloqueio à Líbia. É a única porta aberta ao mundo para governantes que ninguém quer ouvir, como Kadhafi ou Saddam", argumenta.Idiossincrasias que lhe valeram acusações de difundir propaganda iraquiana, ainda que parte do mundo se tenha rendido à aparente recusa do nacionalismo usual nos media americanos. Diana Andringa, jornalista da RTP, é mais crítica. "A CNN é a um tempo instrumento e sintoma da globalização: tornou o mundo mais próximo e mais americano. Foi uma ferramenta importante da 'Pax Americana'", observa. Ainda assim, reconhece que a estação trouxe ao mundo, "em primeira mão, uma informação mais instantânea", que tem como contrapartida um acentuado viés nacional: "A catadupa informativa da CNN é um rolo compressor de outras realidades com menor poder económico e informativo. Hoje, diante de um acontecimento, a primeira coisa que fazemos é ligar a CNN". Algo que não acontece com Pézarat Correia, comentador de temas militares - "sou uma ave rara, não assisto assiduamente à CNN" -, um céptico das emissões que acordaram o mundo na madrugada de 17 de Janeiro de 1991. "A CNN contribuiu para alimentar alguns equívocos, como o da guerra em directo, que se veio a provar ser uma de muitas mistificações. Muitas vezes, não passou de uma guerra fabricada em estúdio. Nenhuma guerra em directo é muito do agrado dos militares", explica.Uma coisa parece indiscutível: ao longo de duas décadas, a CNN marcou a agenda mundial e lançou discussões que alteraram muitas vezes o rumo dos acontecimentos. "O que acontece para o bem e para o mal", observa João Paulo Moreira, docente do Instituto de Estudos Americanos da Faculdade de Letras de Coimbra: "A estação tem assumido algumas causas importantes, mas outras não têm tido essa sorte. A CNN define talvez de mais o que se discute no mundo". E se é certo que, elegendo a continuidade como "news value" primordial, "preservou a centralidade da notícia no menu informativo, que se estava a perder", acabou também por "criar uma obsessão do novo pelo novo, que rapidamente faz das notícias produtos obsoletos", avalia. Vê, porém, na CNN a verdadeira "televisão global": "Usa o 'international english', mais acessível, tem caras oriundas de todos os cantos do mundo, procura amenizar as óbvias marcas de americanidade do seu olhar", analisa. Uma opinião pouco pacífica para Diana Andringa: "Nem todo o mundo fala inglês", lembra. Mas também é verdade que há em cada canto do mundo um espectador "apaziguado pelas ilusões de omnipresença e de omnisciência que a CNN foi a primeira a transmitir", retorque João Paulo Moreira.O futuro passa, obviamente, pelo desafio da integração, que a cadeia parece em boas condições de enfrentar desde que se operou a fusão entre a America OnLine e o grupo proprietário da CNN, a Time Warner. A versão "on line" da estação é, aliás, uma das suas principais mais-valias, refere Francisco Rui Cádima: "A CNN demonstra enormes capacidades de optimização do seu produto informativo clássico aplicadas ao interface Internet". O que é uma evidência: se há algo de que a estação não pode ser acusada é de não conseguir acompanhar os ventos da mudança. Talvez seja, por isso, de acreditar nas palavras do fundador Ted Turner, que um dia prometeu nunca desistir: "Não vamos desligar as emissões até ao fim do mundo - e até isso vamos cobrir em directo".