O cheiro de Salazar na Torre do Tombo
Tem a certeza que o seu nome não está inscrito num dos documentos do Arquivo Oliveira Salazar, em exposição do Torre do Tombo? Vale a pena confirmá-lo visitando a exposição que ali está patente e mostra as várias facetas do chefe máximo do Estado Novo.
O historiador Fernando Rosas já por diversas vezes chamou a atenção para a "personalidade autoritária e centralizadora" de Salazar. Ia da "resolução de minudências protocolares, de assuntos de polícia" até à interferência "da categoria duma qualquer pensão de província ou dos pormenores de um cortejo histórico". Tudo isto minuciosamente anotado, que ele não era homem de perder tempo a deslocar-se aos locais ou a entreter-se em conversas à volta do assunto. Reclamava a informação, lia-a e despachava, com a indicação precisa do departamento, senão da pessoa, que devia ocupar-se do assunto. Voltando a citar Rosas, ele era "pouco crente na capacidade empreendedora dos portugueses em geral e da maioria dos seus colaboradores em particular".Ao longo dos 40 anos em que governou, uma única personalidade terá escapado a esta geral desconsideração. Foi Duarte Pacheco, o mesmo que em 1928 fora a Coimbra convidá-lo para ser ministro das Finanças do Estado Novo e voltou a apoiar, em 1932, quando se tornou presidente do Conselho de Ministros - onde ficou até 1968, quando a queda de uma cadeira o inutilizou.Duarte Pacheco, por seu lado, foi o ministro das Obras Públicas do Estado Novo de 1932 a 1943, quando um acidente de viação o matou. Foi, como se disse, o único ministro que mereceu do seu chefe a distinção de se deslocar ao "atelier" de arquitectura onde se projectavam as obras do regime. Madalena Garcia , a organizadora da exposição, chama a atenção para um detalhe da correspondência de Salazar que revela o apreço que este tinha por Duarte Pacheco. Ao contrário do que se passa com os outros ministros, a correspondência com Duarte Pacheco é reduzida. A explicação está no facto de com este ministro ele falar pessoalmente. Esse detalhe é confirmado pela agenda de Salazar, onde ele anotava diariamente o que fizera durante o dia. São indicações sucintas, mas que revelam, quando comparado com os seus pares, a importância de Duarte Pacheco junto de Salazar. A sua morte também lá está assinalada, com a indicação da ida ao funeral. Sem outro comentário pessoal.Este diário revela o homem de hábitos que era o ditador nascido no Vimieiro em 1889. A agenda, em percalina vermelha, surgiu quando se tornou presidente do Conselho e até 1938 era a sua secretária, Emília Ferreira, quem tomava nota das ocorrências, que ele lhe ditava. Mas nesse ano a secretária licenciou-se e passou para outro posto. Salazar entendeu que ela não era substituível e a partir de meados de 1939 é ele quem preenche os dias da agenda. À residência oficial de S. Bento, onde passou a residir depois do atentado anarquista de 1937, chegavam informações sobre tudo e mais alguma coisa, da polícia secreta - PVDE/PIDE - ao correio diplomático.Ficamos assim a saber que em Novembro de 1949 foi chamado a decidir um litígio que estalou entre o director da Penitenciária de Lisboa, António Abrantes Tavares, e o chefe de brigada da PIDE, Manuel Raposo Medeiros. O director Tavares intimara Medeiros a não o desautorizar nas ordens internas que ele dera, de outro modo - rua! O assunto envolve Álvaro Cunhal. O dirigente comunista cumpria pena naquela prisão e, dentro da lei, solicitara que lhe fossem facultados livros de estudo, a fim de poder concluir o curso de Direito. O director despachou favoravelmente, mas sempre que a ordem de entrega ia ser executada, o "pide" impedia-o. Até que chegou o dia 14 de Novembro e o director do presídio foi taxativo: ou Medeiros acatava as suas directivas ou ficava impedido de entrar na Penitenciária. A carta a Medeiros acaba, afinal, na escrivaninha de Salazar. Na exposição não está visível o despacho que mereceu esta queixa do chefe de brigada da PIDE, nem o que aconteceu ao director Tavares.Para obter essa resposta, diz Madalena Garcia, é preciso investigar no arquivo, que está à disposição do público em geral numa outra sala da Torre do Tombo. "São 800 mil documentos e expostos estão apenas 300. Cada vitrina, só por si, é um tema", sublinha Madalena Garcia, que além de comissária da exposição e sub-directora da Torre do Tombo foi também, em 1981, a primeira arquivista a classificar o espólio documental de Salazar. Ele está disponível desde 1991 e esta exposição tem igualmente por objectivo divulgar junto do grande público a sua existência e acessibilidade. Está já informatizado e a sua consulta pode também fazer-se pelo livro "Arquivo Salazar - Inventário e Índices" (Ed. Estampa), da autoria de Madalena Garcia. O visitante é acolhido por uma citação de Salazar de 1935, seleccionada a propósito para lhe espevitar o olhar e descobrir um outra faceta do exposto, a sua falsa modéstia: " Se por infelicidade minha venho a morrer em cheiro de celebridade, logo se precipitarão sobre os papéis, que não tenha tido tempo de queimar, sábios de nome, dados a investigar com gravidade e minúcia os pequenos segredos humanos". Obviamente que sem necessidade de se "precipitar" sobre ela, esta é uma documentação que é preciso ler para compreender o que foi Portugal deste século.