Guia para o conflito do Líbano
Como a maioria dos países do Médio Oriente, o Líbano tem uma história de conflitos e conquistas. Mas, ao contrário de outros na região, tem também a reputação de convidar e/ou aceitar "invasores" estrangeiros. Num país com um delicado equilíbrio confessional entre cristãos (maronitas, arménios, ortodoxos gregos, melquitas, caldeus...) e muçulmanos (sunitas, xiitas, drusos...), a soberania tem sido frequentemente trocada por segurança.
O Líbano fazia parte do Império Otomano, que durante 400 anos o governou indirectamente, nomeando emires (príncipes) locais e criando exércitos feudais de mercenários libaneses e não libaneses. Em 1920, após o colapso da Sublime Porta, a França tornou-se potência mandatária e, desdelogo, começou por favorecer os católicos maronitas num país onde proliferavam vários credos religiosos. A interconfessionalidade nunca foi pacífica. Já em 1810, drusos haviam massacrado mais de dez mil cristãos.Esta é uma definição que ainda hoje divide o país. Muitos cristãos, sobretudo os maronitas, assumem-se como libaneses, herdeiros dos antigos fenícios, uma das maiores civilizações do Mediterrâneo. Muitos muçulmanos (mas também alguns cristãos) preferem identificar-se como árabes, herdeiros do império omíada que, no seu auge, teve capital em Damasco. Fronteiras traçadas por franceses e britânicos criaram dois Estados - Síria e Líbano - mas não resolveram o problema da nacionalidade.Foram os franceses que impuseram a ideia de um Estado libanês, garantem vários historiadores, mas o Pacto Nacional (um acordo não escrito), que em 1943 dividiu poderes, só serviu para exacerbar o sectarismo. Aos cristãos, que eram a maioria no primeiro censo de 1932, foi atribuída a chefia do Estado e do exército. Ainda hoje mantêm esses postos, masexercem menos influência porque os muçulmanos xiitas, que ocupam a presidência do Parlamento, se tornaram a maioria da população. O primeiro-ministro é sempre um muçulmano sunita. Em todo o caso, desde que a Síria acabou em 1990 com a guerra civil iniciada em 1975, todos os que governam em Beirute têm de ser leais a Damasco.Muitos analistas atribuem as desgraças do Líbano aos vários centros de poder que sempre corroeram o "país do cedro". Divergências políticas e filosóficas separam as várias comunidades. Não só entre cristãos e muçulmanos, mas também entre seitas dentro de cada grupo religioso. Numsistema de clientelismo, os cidadãos eram subservientes perante as poderosas famílias e as suas milícias privadas, em vez de serem leais ao Estado. Isso contribuiu, em 1975, para a desintegração do frágil exército libanês, derrotado pelos guerrilheiros-refugiados da OLP, e para a subsequente guerra civil. Uma guerra em que cristãos, muçulmanos, drusos, palestinianos, israelitas e sírios se mataram uns aos outros aosmilhares, alternando aliados e inimigos.O ponto de viragem na história moderna do Líbano ocorreu em 1970. Nesse ano, o Presidente Suleiman Franjieh, um cristão do Norte, decidiu depurar de potenciais rivais o Deuxième Bureau - a única entidade governamental capaz de controlar os palestinianos. Ao fazê-lo, Franjieh reforçou, sem querer, o poder da OLP no Líbano. Quando, em Setembro domesmo ano, o rei Hussein da Jordânia expulsou e massacrou os palestinianos que o queriam derrubar, centenas de guerrilheiros instalaram o seu quartel-general em território libanês. Alteraram assim o frágil equilíbrio confessional e dividiram a nação em dois campos - a favor (muçulmanos) e contra (cristãos) a OLP. Em 1968, comandos israelitas fizeram uma primeira incursão em Beirute, para destruir um avião no aeroporto da cidade e assim retaliar pelos ataques da guerrilha palestiniana na Europa. A primeira grande invasão, a Operação Litani, só haveria de acontecer dez anos depois, em 1978.Foi também neste ano que as tropas israelitas criaram a sua primeira "zona de segurança" controlada pela milícia Exército do Líbano Livre (mais tarde designada Exército do Sul do Líbano. Em 1982, na Operação Paz para a Galileia, os israelitas cercam Beirute, expulsam os guerrilheiros da OLP, quase destroem a força aérea síria, fazem eleger um cristão como Presidente (Bashir Gemayel) e, quando este é assassinado, fecham os olhos aos massacres de civis palestinianos nos campos de refugiados de Sabra e Chatilla. Ainda conseguem impor um "acordo de paz" a Amin Gemayel, irmão e sucessor de Bashir, mas Damasco rapidamente entra em cena para o anular.Em 1985, sob forte pressão do movimento popular Paz Agora, o Governo de Israel ordena a retirada parcial das suas tropas, de Beirute para uma autoproclamada "zona de segurança" no Sul do Líbano. Mil soldados israelitas e quase 3000 milicianos libaneses patrulham a zona para "proteger" a Galileia de ataques palestinianos. Mas não só os ataques palestinianos não cessaram (em 1987, começou até a "revolta das pedras" na Cisjordânia e Gaza) como Israel ganhou um novo e feroz inimigo: o Hezbollah.Criado durante a invasão israelita de 1982 por Guardas Revolucionários iranianos, o Hezbollah rapidamente se tornou numa das mais importantes forças políticas libanesas. Única milícia que os sírios não dissolveram após o fim da guerra civil em 1990, este movimento xiita tem deputados em Beirute e guerrilheiros no Sul do Líbano (armados por Teerão). O seu guia espiritual é o ayatollah Fadlallah e o seu chefe político é o xeque Nasrallah. Com algumas centenas de voluntários logisticamente apoiados por aldeias inteiras e adeptos do martírio por Deus e pela Pátria, Nasrallah pode vangloriar-se de ter derrotado o poderoso Tsahal (exército israelita). Desde 1978, os guerrilheiros que a Síria usou como instrumentos de guerra para recuperar os montes Golã mataram mais de 900 soldados israelitas. Desde 1982, mataram também mais de 300 milicianos do Exército do Sul do Líbano (ESL).Foi criado em 1978 como Exército do Líbano Livre e o seu primeiro comandante foi o defunto general Saad Haddad, um desertor do exército regular libanês. A milícia, que Israel armava, treinava e financiava, chegou a ter 3000 homens (a maioria cristãos, mas também drusos e xiitas) ao serviço do Estado judaico. Hoje, do Exército do Sul do Líbano (ESL), comandado pelo general Antoine Lahad, já quase nada resta. Os seus milicianos emigraram, renderam-se ao Hezbollah ou tornaram-se nos novos refugiados do Médio Oriente. Serão talvez alojados em localidade árabes israelitas onde já vivem, na ignomínia, antigos colaboracionistas palestinianos. Outros ainda sonham ser amnistiados e reintegrados no exército libanês.A Síria, o verdadeiro poder no Líbano, não apreciou que o primeiro-ministro israelita, Ehud Barak, tivesse cumprido a promessa de retirar unilateralmente do Sul do Líbano sem um acordo com Damasco. O Presidente sírio, Hafez Assad, nunca aceitou pacificar a fronteira Norte de Israel antes de recuperar os montes Golã, que ele perdeu na guerra de 1967, quando era ministro da Defesa. Ora, com a retirada israelita, anunciada para 7 de Julho mas precipitada pelas deserções no ESL, Assad perde o seu trunfo. O Hezbollah poderá ser desactivado - o Partido de Deus tem a sua própria agenda política e não esconde divergências com a Síria (patrono do grupo rival xiita Amal), que mantém 40 mil soldados no vale de Bekaa. Mas Assad poderá sempre recorrer a grupos palestinianos que reivindicam o direito de retorno dos refugiados de 1948 (no Líbano, são 360 mil, um dos espinhos do processo de paz) para desestabilizar a região. Na guerra que conduziu à sua criação, Israel ocupou uma faixa do Líbano Oriental de Outubro de 1948 até Março de 1949, quando os dois países assinaram um acordo de armistício. Mas a "linha de demarcação" então estabelecida nunca foi legalmente reconhecida. O actual Presidente libanês, Emile Lahoud, certamente sob instruções da Síria, afirma agora que a retirada israelita só será "total" se recuar às fronteiras coloniais dos anos 20 e incluir a zona de Chebaa (ver mapa). No entanto, de Chebaa, cem quilómetros quadrados de terra habitada quase exclusivamente por contrabandistas, quase ninguém até agora ouvira falar. Situada no monte Hermon (onde Israel tem uma estação de radar), Chebaa faz parte do planalto dos Golã. Foi ocupada na guerra de 1967 aos sírios - que, por sua vez, a tinham ocupado em 1957 - e não aos libaneses. Damasco sempre disse que Chebaa era síria, e Beirute nunca contestou essa soberania. Também Israel e a ONU afirmam que, sem provas, Chebaa não pode ser considerada parte do Líbano.A retirada israelita, que ficará concluída "dentro de dias", coloca problemas à Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL). O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, queria reforçar a UNIFIL, de 4500 para 8000 efectivos, mas o vazio de segurança que se avizinha na fronteira israelo-libanesa levou-o a fazer uma advertência: "Não seremos um saco de pancada, nem assumiremos responsabilidades que não são nossas." Annan e os seus emissários tentaram, nas últimas semanas, convencer a Síria e o Líbano a aceitar que uma força da ONU "mantenha a paz" após a retirada israelita. Israel e os Estados Unidos, numa ironia da história, procuram também convencer a França a restaurar a sua influência no Médio Oriente, assumindo o comando da UNIFIL, uma força criada em 1978 para proteger os civis libaneses, mas que se mostrou incapaz de travar todos os ataques e invasões israelitas. Mas, sem conhecer os planos de Assad, é difícil ao socialista Jospin e ao gaullista Chirac, rivais nas presidenciais de 2002, correr riscos tão sérios. Em 1984, oitenta soldados franceses de uma força multinacional em Beirute morreram num ataque supostamente encomendado pela Síria.