África correndo para o fundo
África está um excesso de guerra, de fome, de doença, de pobreza, de poluição. O berço da humanidade parece mais o seu lugar de extinção. Alguns apocalipses estão prometidos: a sida vai roubar milhões de africanos, que vão continuar a morrer também nos inúmeros conflitos, ainda em expansão. Entretanto, algo de novo nasce também: um novo mapa, outros líderes, talvez uma nova vida. "É um parto difícil". O momento, na Serra Leoa ou na Etiópia, no Congo ou em Angola, ainda é dos agentes do caos. O continente está em convulsão, enquanto o mundo assiste: "As missões da ONU só correm mal em África". Há quem acredite que é possível - urgente e útil - inverter a deriva "Ou então haverá uma guerra dos pobres contra os ricos".
Algumas imagens de África: um exército de crianças na Libéria, um exército de amputados na Serra Leoa (sem mãos) e em Angola (sem pés), uma vaga de deslocados em Moçambique, uma horda de esqueletos vivos na Etiópia, um exército de exércitos entre os Grandes Lagos e a Namíbia, nem exército nem Estado na Somália, um bando de arruaceiros incendiando o Zimbabwe. Para milhões de africanos, o berço da humanidade transformou-se no sítio da sua extinção, um continente onde a vida se fabrica sem alimento e sem água, sem ambiente, com guerras e epidemias, uma terra sem esperança que cumpre a sua própria maldição. Quarenta anos de independência são um sonho tão longínquo no passado quanto o "Renascimento africano" é uma promessa falhada para o futuro.África ocupa quase invariavelmente os últimos lugares em qualquer índice do desenvolvimento social, económico, humano: estão neste continente os países mais pobres, as populações menos saudáveis, os recém-nascidos que mais morrem, as crianças com menos esperança de vida, os adultos menos alfabetizados, as piores comunicações, o maior desgaste ambiental. Além das guerras, é em África que a sida vai causar o maior massacre nos próximos anos - é lá que habitam 23 dos 36 milhões de vítimas, isto é, quase 70 por cento dos infectados em todo o mundo -, cortando a esperança média de vida em 20 anos e matando metade da elite urbana.Crises como as da África Ocidental ou Central fazem o sociólogo guineense Carlos Lopes falar de um conjunto de Estados que optaram por "fazer uma corrida para o fundo" onde "a marginalização passa a ser uma opção" (ver texto neste destaque). Olhando o continente, Fernando Jorge Cardoso, investigador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, deixa claro que todos os focos de crise têm causas diferentes mas descobre três factores comuns: a desagregação do Estado e do seu poder central, que se traduz num enfraquecimento do centro; o "aumento brutal" da desigualdade na distribuição de riqueza; e o aumento geral da pobreza com "P" maiúsculo (das doenças aos desastres naturais)."Aquilo a que estamos a assistir é uma erupção de conflitos que estavam artificalmente recalcados e que nunca tinham sido realmente encarados", nota Jan Van Eck, do Centro de Resolução de Conflitos da Cidade do Cabo, onde é consultor para o processo de paz no Burundi. "Quase nenhuma das tentativas de paz no continente foi séria, porque se valorizou simplesmente o fim dos combates, parar a matança, e se obrigou as partes a assinar uma folha de papel que elas não vão respeitar porque as causas do conflito não foram sequer abordadas. "É toda uma metodologia que se tem de alterar, deixando de aceitar soluções impostas de fora: os congoleses não pediram Kabila, nem Brazzaville pediu o golpe da França...""Por vezes é preciso dar uma hipótese à guerra. Os conflitos armados por vezes ajudam a resolver muitos problemas", defende o norte-americano Edward Luttwak, professor de Estratégia. Na vertigem de conflitos, algo de novo está também a nascer, e desta vez com uma margem manobra maior do lado africano. "Ao contrário do que aconteceu no fim do século XIX, no fim do século XX a redefinição de fronteiras, ou melhor, de poderes, é feita sob o comando das elites urbanas locais, com alianças externas", explica Fernando Jorge Cardoso. Paris ou Washington, por exemplo, têm interesses e influências, mas não têm o controlo dos seus aliados africanos como tinham na guerra fria.Jan Van Eck admite que "a guerra está numa escalada em África e, juntando tudo, não podemos censurar o afro-pessimismo. Mas, ao mesmo tempo, isto é injusto porque África é um continente jovem. De facto, ainda não é independente porque não se desenvolveu ao nível de sustentar a democracia."Há excepções. A África do Sul - mas com o problema da criminalidade e da pressão crescente dos refugiados do Norte que o país não conseguirá gerir. O Senegal - mas com Casamansa insolúvel. Moçambique - mas com debilidades acentuadas pelas últimas cheias. As ilhas, Cabo Verde, Maurícias, Seychelles. O Botswana - mas com a guerra do Congo a atrair o país-modelo para um atoleiro. "Há em vários países um crescimento e uma maturidade de capacidade de intervenção da sociedade civil - até em Angola - que promete algo para o futuro", repara Carlos Lopes, representante do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em Harare. "Mas é um parto difícil"."A verdade é que África sofre actualmente de múltiplas crises - ecológica, económica, social e política", afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, no início do ano. Depois da desilusão com a geração da independência, o Ocidente - e em primeiro lugar os africanos - perdem a esperança em líderes que ainda há bem pouco tempo eram elogiados pelo Presidente Bill Clinton dos EUA como a garantia de um "renascimento africano": Paul Kagamé do Ruanda, Yoweri Museveni do Uganda, Meles Zenawi da Etiópia, Isaias Afwerki da Eritreia.Sobre os poucos dirigentes de países democráticos ou em transição, como Thabo Mbeki na África do Sul ou Abdelaziz Bouteflika na Argélia, pesa uma enorme responsabilidade de influência em todo o continente - talvez exagerada, talvez injusta. Resta uma nova esperança ainda, acredita Carlos Lopes: "Um movimento com uma nova classe, jovens que não têm dificuldades em identificar-se com as grandes correntes mundiais, porque são liberais do ponto de vista económico, empreendedores e que se distanciam da forma de nacionalismo africano marcante até aqui."Ninguém questiona a urgência de inverter o ciclo de tragédias em África. Se outras argumentos faltassem, há um para obrigar a comunidade internacional a agir: "Tem que ser possível inverter a situação, caso contrário assistiremos a uma guerra dos pobres contra os ricos", como diz o general Pezarat Correia, especialista em questões internacionais. "A população africana duplicará em 30 anos. Se a crise continuar, teremos o Sul a bater à porta da África mediterrânica e, depois, a pressão sobre a Europa mediterrânica.""Houve um envolvimento histórico do Ocidente em África, muito negativo e que causou uma destruição devastadora. O mundo pode voltar as costas mas também pode optar por desempenhar um papel positivo e nesse caso tem que ser a sério", afirma Jan van Eck. "Caso contrário, com o aumento da pobreza, mais e mais vozes em África exigirão uma compensação da Europa e da América. Não é bom ficar sentado até ser forçado a intervir. Nada impedirá que o Ocidente tenha que pagar", garante Jan Van Eck."Não chega mandar aviões de comida para a Etiópia depois de a CNN ter passado imagens de pessoas a morrer de fome", insiste o especialista sul-africano. "O Ocidente não é uma fortaleza e não pode simplesmente livrar-se de um continente inteiro. Esqueçam a moralidade: todas as potências têm uma antiga colónia a estilhaçar-se em África."*com Ana Gomes Ferreira, em Nova Iorque, Ana Navarro Pedro, em Paris, e Paulo Anunciação, em Londres