Dois séculos de gótico português

Levar a Rimini um pouco do que foi o Portugal gótico através de uma exposição que chega a Lisboa em Outubro. A escultura nacional num período em que a Itália se entrega à pintura. Oportunidade para ver algumas das jóias dos museus nacionais.

Dando continuidade a um projecto do conservador Sérgio Guimarães de Andrade, entretanto falecido, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) tem patente em Rimini, Itália, uma exposição dedicada ao gótico nacional, intitulada "Nos Confins da Terra: Escultura e Arte em Portugal (1300-1500)". Em Outubro, Lisboa poderá ver as peças que a equipa do MNAA reuniu em torno de uma ideia inicial - levar a Itália, através da produção artística dos séculos XIV a XVI, sobretudo a escultórica, o Portugal que antecedeu o renascimento.Sugerida por um jornalista italiano que visitou o museu, surpreendido com a riqueza da escultura portuguesa de um período em que no seu país todas as atenções se voltavam para a pintura, "Nos Confins da Terra" tem por objectivo "pôr duas realidades em confronto através da divulgação da escultura portuguesa do século XIV ao início do século XVI: a elevada produção nacional e a reduzida actividade escultórica italiana, substituída, neste período, pelo surgimento da pintura do renascimento", afirmou ao PÚBLICO Anísio Franco, técnico superior do MNAA. Por se tratar de uma exposição preparada a pensar num público que não conhece a realidade cultural portuguesa, a estrutura foi determinada pela necessidade de contextualizar as transformações históricas que se reflectiram na produção artística nacional. Três grandes blocos garantem o estabelecimento de um fio condutor, nem sempre cronológico. A exposição abre com uma introdução ao gótico português e passa para um núcleo central dedicado às grandes áreas da escultura, subdividido em quatro módulos que se passeiam pelas formas, os tipos, os temas, os mestres ou os principais centros de produção do território. "O núcleo final versa as perspectivas do gótico, as saídas e as linhas do século XVI, quando se concentram já em Portugal quase todos os traços do renascimento. A vontade do clássico, um gótico final - o manuelino -, outros encontros com a própria cultura italiana e a influência muito flamenga na escultura. É o núcleo que faz a ponte entre o país de origem da escultura e o país que a acolhe."O conjunto de 140 peças, essencialmente provenientes do MNAA e do Museu Machado de Castro, inclui pintura, esculturas em mármore, calcário e madeira, mobiliário, relicários, retábulos, estelas funerárias, jacentes e peças de ourivesaria. Contando com o contributo dos museus de Aveiro, de Évora, de Lamego, do Azulejo, Grão Vasco e Soares dos Reis, "Nos Confins da Terra" permitiu trazer a público peças que nunca integraram grandes exposições ou que se encontravam, até à data, em reserva. "Duas das mais importantes peças da exposição - o conjunto de 26 esmaltes representando a 'Paixão de Cristo', proveniente do Soares dos Reis - e a cabeça de São Pantaleão, um busto relicário de grande devoção popular, têm muito pouca divulgação. O que faz com que a exposição venha a ter um grande impacto também em Portugal", explicou ao PÚBLICO Maria João Vilhena, coordenadora do catálogo.Os quatro núcleos em que se divide o cerne da exposição pretendem dar a conhecer os aspectos que determinaram os principais traços da escultura gótica portuguesa. No primeiro módulo, "Tipos, Espaços e Funções", destaca-se a figura de um cavaleiro (símbolo escolhido para a mostra), "importante pelo facto de ser uma das poucas que faz a passagem entre o mundo civil e o religioso, numa época em que as encomendas de estatuária eram essencialmente feitas por bispos, abades e abadessas". As funções e os espaços, revisitados através de lápides funerárias e comemorativas ou de escultura de arquitectura e devocional, dão lugar, numa segunda fase, a uma leitura "mais cronológica" da produção portuguesa ao longo de pouco mais de dois séculos, voltada, essencialmente, para os centros de produção e os mestres da época. Coimbra, Évora e Lisboa concentravam o maior número de oficinas: "Coimbra à cabeça porque dispunha da matéria prima - estava perto das famosas pedreiras de Ançã - e congregava importantes encomendantes. Era a grande produtora de imaginário desta época, seguida por Lisboa e Évora, está última graças ao trabalho do mármore."Neste núcleo dá-se especial relevo a um caso raro da escultura portuguesa quase até ao século XVII. As obras atribuídas a mestre Pero, numa altura em que o sistema oficinal e a falta de documentação fazem com que seja extremamente difícil falar em autoria, merecem destaque. "O mestre Pero é um caso particular porque conhecemos o seu nome, conhecemos contratualmente algumas das obras que lhe foram encomendadas, o que nos permite isolar, através de um estudo comparativo e formal, as peças que estiveram sob a sua mão e as que são irradiações do seu trabalho."O terceiro e o quatro módulos - "Temas e Cultos" e "A Virgem" - centram-se nas figuras de devoção. Aqui as marcas do gótico acentuam-se progressivamente. "A humanização das figuras dos santos e da Virgem, bem como a densidade dos corpos, servem de contraponto à desmaterialização das figuras do românico", defende Anísio Franco. "A imagem assume uma importância extrema porque significa a materialidade do santo e da própria fé", acrescenta Maria João Vilhena.Os núcleos iniciais e final "constroem o discurso do sentido celebratório destas imagens no dia-a-dia do homem medieval e dão uma outra leitura da exposição, voltada para o papel de relevo do mecenatismo, da encomenda devocional".Procurando traçar a evolução da escultura portuguesa dos séculos XIV ao XVI, "Nos Confins da Terra" reúne um espólio diversificado que permite ir "do gótico rural, um pouco ainda na continuidade do românico, em que é fundamental a introdução das ideias mendicantes, responsáveis pelas grandes construções nacionais (o caso do Mosteiro da Batalha, que é entregue aos dominicanos, e as diversas igrejas franciscanas que se espalham um pouco por todo o país), ao final, um gótico adulto que poderíamos aproximar do internacional com exemplos como a rosácea de Santarém, que se dissemina por várias ramificações que irão dar ao manuelino", explica Anísio Franco.

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