Björk num altar
Apesar de todas as dúvidas, "Dancer in the Dark" é um dos objectos incontornáveis desta edição de Cannes. Como se Lars von Trier, pegando o musical do avesso, substituindo o artifício pela improvisação, visse neles apenas um instrumento para a crucificação de Björk.
Chegou a Cannes o musical de Lars von Trier, ou o anti-musical-digital de Lars von Trier. O-que-quer-que-seja musical para destruir o género (ou para provar que o género já não é possível) ou manifestação de crença cega de um cineasta (tão cega, que parece querer resistir mesmo aos sinais de impossibilidade que vai semeando), "Dancer in the Dark" era, à partida, o filme-acontecimento do festival. Ontem, a reacção foi a condizer, e foi a primeira vez que ela se manifestou assim nesta 53ª edição: assistência completamente dividida, entre aplausos, vaias e um sentimento geral deincredulidade.Comecemos pelas impossibilidades. "Não é um musical à Hollywood" (foi esse o ponto de partida do realizador); foi filmado com a câmara ao ombro (von Trier, praticamente sozinho no "plateau"); nos números musicais os planos são estáticos, como se captassem um espectáculo amador "live", e dá-se apenas uma ligeira saturação da cor, sem se acelerarem os movimentos da câmara, sem "desrealização", portanto, quando se passa para o "sonho". Porque a realidade é esta: em "Dancer in the Dark" há uma mulher que quase já não vê (Selma/Björk), uma operária de origem checa que, algures na América profunda dos anos 60, amealha dinheiro para uma operação que impeça o filho de cegar como ela, e que se refugia delirando com as canções de "Música no Coração" - "These are a few of my favourite things".Agora as crenças: Björk, que canta "I' ve seen it all" ("Já vi tudo"), quando deixa de ver; Björk, com óculos e lentes que lhe empurram os olhos para o fundo, a dançar e a dar vazão aos seus "björkismos", como lhes chamou o coreógrafo do filme, Vincent Paterson. "Ninguém se movimenta como ela", disse Paterson (trabalhou, por exemplo, nos vídeos de Madonna e na sua "Blonde Ambition Tour"), que disse ter escolhido as "idiossincrasias" da cantora islandesa, os seus maneirismos, como programa de trabalho para coreografar o filme. Björk não interpreta Selma, Björk vai-se crucificando aos poucos enquanto se deixa "abraçar" pela sua personagem, e faz sentido ouvir Lars von Trier dizer que, enquanto realizador, se sentiu como um carrasco à beira de uma execução. "Björk não é uma actriz profissional, ela não interpretava, ela vivia aqueles sentimentos todos. Foi terrível para ela. Foi terrível para mim. Era como estar a ver todos os dias uma pessoa a morrer". Foi terrível para os dois, o choque na rodagem entre os dois egos terá sido tão extremada que hoje, Björk, também autora das canções do filme, não quer falar sobre "Dancer in the Dark", que para ela foi uma experiência dolorosa.Por isso, apesar de ter sido anunciada a sua chegada a Cannes, Björk não esteve na conferência de imprensa porque, entre outras coisas, não consegue estar ao pé de Lars von Trier nem falar daquilo por que passou. "Foi muito doloroso, mas só podia ter sido assim", diz o realizador. Björk, que não é actriz, parece ter sido a única a acreditar - de um lado. E, de outro, parece que Lars von Trier só teve crença para ela, ou então deixou-se levar pelo despique criativo com uma personalidade tão forte e tão exótica quanto a dele - isso ficou no ecrã, de qualquer forma, e é totalmente devorador, é o buraco negro do filme. Quanto aos outros, intérpretes profissionais, não tiveram oportunidade. Em redor de Björk, em "Dancer in the Dark", ainda há Catherine Deneuve, que faz de "anjo da guarda" de Selma - e em Cannes continuou a sê-lo, pedindo à imprensa que não fosse "perversa" ao ponto de, "no primeiro dia de exibição do filme estar a querer explorar as dificuldades da rodagem", e referindo-se a Björk e von Trier como duas pessoas "muito especiais". Mas Deneuve - que reconhece que esta foi "uma experiência inteiramente nova" - e os outros intérpretes parecem perdidos, pairando na expectativa constante de poderem ser acolhidos por um filme que, afinal, os deixa sempre de fora. Como se Lars von Trier, pegando o musical do avesso, substituindo o artifício pela improvisação, por exemplo, visse neles apenas um instrumento para a programada crucificação de Selma. De facto, fica a sensação de que o argumento, vai, esforçada e desastradamente, preparando o desenlace final de Selma, para justificar a subida da personagem ao altar onde foram imoladas as personagens femininas de "Ondas de Paixão" e "Os Idiotas" - os dois "volumes" anteriores de uma trilogia dedicada a mulheres dispostas, desta forma radical, ao sacrifício. Isso é fatal para a fé (e até introduz um perturbante efeito de "falsificação") exigida em "Dancer in the Dark", filme que, apesar das reformulações, continua a pertencer a um género para o qual é preciso capacidade de crença. Ainda por cima, quando a sua reformulação, aqui posta em prática, não deve nada à cinefilia (von Trier admite que não é daqueles cineastas que passou a infância a ver filmes, musicais ou não, porque em casa dos pais não havia televisão) e é feita em nome da "verdade", de um confronto com a "realidade". E é tão fatal que, se era impossível não acreditar no "milagre" final de "Ondas de Paixão" - o plano dos sinos -, é possível ficar indiferente à brutalidade do último plano (Lars von Trier pede que não seja revelado) de "Dancer in the Dark".Apesar de tudo isto, não se esquece facilmente o turbilhão de uma personagem chamada Selma, de uma "actriz" chamada Björk. E são irresistíveis os desafios para que elas, e Lars von Trier, atraem os espectadores. Sem sombra de dúvida, e apesar de todas as dúvidas, "Dancer in the Dark" é um dos objectos incontornáveis desta edição de Cannes.