Utopias e outros mundos

Foi o acontecimento literário em França, depois do Salão do Livro de Paris. Este ano, os "espantosos viajantes" do festival de Saint-Malo vieram da ficção científica, da banda desenhada e de outras aventuras utópicas.

Vêm de toda a parte, carregados de histórias: maravilhosas, terríveis ou simplesmente humanas. São os "étonnants voyageurs", passageiros em trânsito pelo Festival Internacional do Livro de Saint-Malo, que entre 6 e 8 de Maio decorreu pela décima-primeira vez na cidade corsária do norte da Bretanha. À volta do tema "Utopias", mostraram que o futuro já começou... neste mundo. Se não na realidade, pelo menos na ficção, quer se lhe chame científica, fantástica, de aventuras ou de viagens. Milhares de espectadores ávidos, atentos, apertados, seguiram-lhes o périplo e a demonstração.A olho nu, esta terá sido, porventura, a edição mais concorrida de um encontro entre escritores e leitores que, a seguir ao Salão do Livro de Paris, se tornou o mais importante acontecimento literário da França. Visto a telescópio jornalístico, não terá sido o mais brilhante. Mas que brilhou, ainda assim brilhou, graças à luz de certas estrelas da galáxia Literatura que, a partir deste momento, deverá figurar nos mapas astrais, ao lado da nebulosa Efémera. E, como de costume, foi lúdico, informal, ecléctico, afectuoso e excêntrico. Embora à custa da incomodidade de uns aviões ronceiros do século passado, que deslocam pessoas de um lado para o outro como se fossem trouxas, valeu a pena ir lá. Porque "lá", as coisas ganham outra velocidade - e outro sentido.Utopias: não poderia haver melhor tema para o ano 2000, início de um milénio onde se projectaram tantos sonhos, tantos fantasmas, tantos medos e tantas esperanças. Quem melhor fala disso são os autores de ficção científica, por palavras ou por imagens. Não estavam em Saint-Malo os monstros consagrados, o que justifica a pequenina desilusão de quem esperava apalpar Ray Bradbury, J. G. Ballard, Arthur C. Clarke ou Ursula le Guin, para ter a certeza de que são seres de carne e osso e não objectos fictícios, fruto de uma mente alucinada. Mas estavam outros, como os discretos Brian Aldiss e William Gibson, e os exuberantes Connie Willis e James Morrow (ver texto ao lado), a apontar novos caminhos da literatura fantástica e, coisa mui apreciável, capazes de descer à Terra para, num corredor apinhado do Palais du Grand Large, explicarem a um ouvinte chocado por certas declarações provocatórias (por exemplo: para que serve o Homem?) que não escrevem contra a humanidade, mas movidos pelo pressentimento de uma nova humanidade. Às vezes, havia lágrimas nesses encontros, dignas de um filme dos velhos tempos. "Nem tudo está perdido", comentava Morrow, o autor da provocação, em jeito de síntese a uma de tais cenas. E, abanando o rabicho de cavalo, vibrava uma palmadinha nas costas daquele futuro leitor fiel, para logo rumar ao salão do livro, aonde era chamado para dar autógrafos. Querem ficção mais realista?Sim. Os "bedês" - Manchu, Glen Baxter, Schuiten, Moebius e outros "Métal Hurlant" - a par de um Peter Sís, alquimista de uma "Praga Dourada" que pariu o Golem, e de um Albert Robida grávido de um futuro que se tornou o nosso presente, em breve o nosso passado, mostravam, nas magníficas exposições que o festival lhes dedicou, como é ténue a fronteira entre o real e o imaginário. Para fruir a de Schuiten, na capela de Saint-Sauveur, era preciso transpor os muros da cidade maluína (entenda-se: de Saint-Malo), navegar por oceanos de turistas vindos para um fim-de-semana prolongado e, finalmente, render-se à evidência de que as "cidades obscuras", inventadas de ponta a ponta por um arquitecto genial, são os lugares onde habita o nosso coração secreto. E, se calhasse encontrar o autor de tais prodígios na ronda das muralhas - onde, na companhia do vento e das gaivotas, parecia sentir-se em casa -, era possível ouvi-lo dizer que o mundo desenhado pelo seu lápis nada tem de inventado, é apenas uma versão do mundo que sempre serviu de refúgio aos poetas, profetas e demais visionários.No Palais du Grand Large, por onde desfilam, ao ritmo das vagas marítimas - que, por sua vez, acompanham o ritmo dos cavalos livres na planície, os "étonnants voyageurs" -, as coisas não costumam ser ditas com tal solenidade.Mas pode acontecer. Também pode desacontecer. Quando desacontece, deve-se procurar a origem do erro no género feminino, fonte de grandes perturbações morais e sociais, como é universalmente sabido. Em Saint-Malo, cidadela eminentemente viril, não há, graças a Deus, notícia de grandes estragos causados por mulheres. As maluínas viram os seus homens partir para a aventura (a guerra de corso, a pesca do bacalhau) e às vezes regressar, carregados de troféus e doenças venéreas. Não se sabe se entretanto sentiram saudade deles. Nunca ninguém escreveu a história dessas e de outras insignificantes. Colette, que viveu ali perto, numa mansão resguardada por uma tília centenária, estava mais interessada em recriar os seus amores eternamente juvenis do que em olhar o mundo mutante que a rodeava. E o abade Fouré, cada vez mais misantropo à medida que envelhecia, lá ia esculpindo os rochedos de Rothéneuf, a partir dos quais dava forma a fêmeas mitológicas que as vagas do mar da Mancha tiveram a bondade de humanizar através da erosão.O "Etonnants Voyageurs" poderia perfeitamente passar sem mulheres. É sabido que os viajantes costumam ser tipos barbudos, com umas bolsas seminais bem abonadas, cujo conteúdo precioso vão derramando ao longo da estrada, "on the road", de borla e, de preferência, cavalheirescamente. Exemplo desta atitude é um tal Jim Harrison, velhote americano "habitué" do festival, sempre com umas jovenzinhas esparramadas ao pé da sua bengala, sobre as quais deita um olhar lúbrico que não engana ninguém. Mais conhecido em França do que na sua América natal, não sei dizer se os livros dele são bons ou maus, porque, em múltiplas tentativas, jamais consegui ir além da segunda página, onde o homem, se não vai à caça, vai à pesca, e o resto é diálogo. Mulheres, dizia eu. O diabo. Politicamente correcto - apesar das proclamações de marginalidade -, o festival de Saint-Malo sempre foi trazendo algumas. Velhas, de preferência, como a marinheira Anita Conti e a viajeira Ella Maillart, que, sem se gramarem uma à outra, souberam partilhar momentos de intensa emoção. Mortas elas, que nos resta? Umas gajas que ninguém conhece, mas que, ainda assim, servem para mostrar que o festival não é um baluarte masculino, ao contrário do que afirmam certos detractores. Pois não: dos 150 autores catalogados, 13 são do sexo feminino, menos de um décimo. Bonita proporção.As mais badaladas dão pelos nomes de Pam Houston, Judith Freeman, Karla Kuban e Susan Power e, para lá de tudo o que as separa temática e estilisticamente, liga-as o factor comum de viverem em ranchos do Farwest, onde criam cavalos e escutam o silêncio dos grandes espaços.São bichos lentos. Montadas em cavalos ruivos e obedecendo ao ritmo natural das patas animais, como poderiam elas chegar a tempo de dizer a Michel le Bris, fundador e director do festival, devidamente barbudo, cavalheiro e convencido, que a importância da viagem não se mede forçosamente em quilómetros? Chegaram tarde, pois, obrigando Maette Chantrel, competentíssima apresentadora do "Café Literário", a desdobrar-se em explicações acerca da escassa representação feminina neste festival, que tiveram o mérito de não convencer ninguém. Seria preciso vir, lá dos confins australianos, uma Nikki Gemmell, a explicar que toda a literatura é uma luta contra a morte. Exactamente o que os homens escritores costumam dizer. Posto isto, tocou a sineta (metaforicamente) para o almoço, e ficámos todos amigos e amigas.Não se pense que o festival resvalaria para uma doce paz de alma. Pois já lá vinha Richard Matheson, o "monstro" de "Twilight Zone", de "Star Trek", de alguns filmes de Spielberg e de uns tantos contos cruéis, a dizer que o mundo não é tão abominável como ele o descreve, mas bem pior. Curiosamente, o homem, um patriarca de olho mortiço e barba branca, tem o ar dulcíssimo de quem está prestes a pedir perdão pelas maldades cometidas. Mas não se atreve a ir além da sugestão - e um enigmático sorriso fica-lhe atravessado nos beiços. Como se fosse uma personagem de si próprio, o génio frio que ele próprio criou no "Diário de Um Monstro", ou uma laranja mecânica a vogar no infinito.Eis o oposto: Alberto Manguel, autor de "Uma História da Leitura" (edição portuguesa da Presença) e de um recente "Dicionário dos Lugares Imaginários", além de outros ensaios que se lêem como romances e, até, de um romance que se lê como um ensaio, "Dernières nouvelles d'une terre abandonnée". Manguel também usa barba, mas é uma barba pequenita, adolescente, envergonhada. Suficiente, porém, para levar uma escritora aparentemente seguríssima, Pam Houston, autora do divertido "Cowboys are my weakness" ("Sempre tive um fraco por 'cowboys'"), a interrogar-se sobre as possibilidades de competição feminina num mundo literário dominado pela pelagem viril. "Posso ter tudo", diz ela, "talento, encanto e influência. Posso ter tudo, mas nada serei se não tiver uns pêlos no queixo. Ora, não os tenho e não vejo maneira de os ganhar. Por isso, como escritora, hei-de ficar sempre atrás dos peludos, ainda que não tenham escrito uma linha de jeito. O mundo literário não passa de uma aldeia de macacos."Ao contrário de Matheson, Manguel é optimista. Não de um optimismo palerma, à maneira do melhor dos mundos possíveis, mas de um optimismo lúcido, de quem crê na eventualidade de um mundo ainda pior e tenta esconjurá-la por meio de palavras. Esse o sentido do único romance que escreveu, conforme vai contando a um público arrebatado pela sua verve e simpatia. Na sua adolescência argentina, Alberto teve por professor de literatura um homem extraordinário que o "autorizou" a ser escritor, contra o parecer familiar, que o votava a uma profissão utilitária. Mais tarde, no exílio, veio a saber que o tipo era um colaborador da ditadura, responsável por denúncias de estudantes, prisões, torturas e assassínios. Como conciliar as duas faces, luminosa e tenebrosa, da mesma personagem? Através da literatura, precisamente. Os romances servem para resolver questões irresolúveis. São as utopias que restam num mundo que deixou de acreditar em utopias e se rendeu à bruta realidade.Não é tanto assim, contesta Jean-Christophe Ruffin, autor de "O Abissínio" (editado pela Bizâncio) e do recente "Les causes perdues", onde utiliza a sua experiência de médico sem fronteiras para confrontar a visão dos assistidos (no caso, o povo da Etiópia) com a dos assistidores. Não é tanto assim: a morte da grande Utopia deixou espaço a utopias minimais que, em vez de pretenderem salvar o mundo (ideal que a História revelou impossível), se contentam com fornecer pequenos remédios aos mais desmunidos: evitar que uma criança morra de fome, reunir uma família dispersada pela guerra, enterrar uma semente num campo minado. "Não há mais nada a fazer", diz ele, com o ar grave de alguém que desceu ao fundo do sofrimento humano. Onde se prova que "Etonnants Voyageurs", ligeiro, futurista e aéreo, não é só um parque infantil para uns tantos intelectuais se divertirem.Nuruddin Farah, o escritor somalí que este ano, com o romance "Secrets", ganhou o Prémio Astrolábio, atribuído pelo conjunto de livrarias francesas que cuidam da literatura de viagens (há disso), jamais se dignaria deslocar-se da África do Sul, onde vive exilado, se não soubesse que este festival, apesar de divertido, estouvado e louco, é um caso sério. Feitas as contas, veio e não se arrependeu, apesar de a sua condição de muçulmano o impedir de gozar das delícias gastronómicas locais, que todas as noites coroavam os trabalhos. Não gostando de ostras, impedido de beber vinho e absolutamente averso ao porco, com licença, remetia-se invariavelmente ao seu quarto de hotel, que, Alá seja louvado, tinha uma vista fabulosa sobre o mar.A escala literária em Saint-Malo comporta dois tipos de passageiros: os eternos e os efémeros. Naruddin Farah pertence à segunda categoria, o que quer dizer que não se voltará a ouvir falar dele por estas bandas. Quantos aos eternos, nunca se sabe.O mais eterno, depois de Monod, que este ano não figurou, é Francisco Coloane, o marinheiro chileno a quem a televisão francesa, canal 3, consagrou uma emissão, ao mesmo tempo que Luis Sepúlveda mostrava em Cannes uma adaptação da sua "Terra do Fogo". Conduzido pelo filho numa cadeira de rodas, quase cego, o velho lobo do mar exibiu a veemência de sempre e, como sempre, arrebatou ao público uma salva de palmas.Jacques Lacarrière, com o seu ar de anjo vinhol, é simultaneamente efémero e eterno. Efémero: passa pelas coisas agitando um par de asas brancas que se queimarão na próxima vela, fielmente acesa, "chaque nuit", pela sua mulher e cúmplice e intérprete, Sylvia Lipa. Eterno: esta lá desde o primeiro festival, igual a uma pedra, mas tão leve que parece um meteorito caído dos espaços. Com estas e outras falas mansas, pode Michel le Bris dizer, voltando ao tema da utopia: "O 'Etonnants Voyageurs' é uma utopia realizada". Sim, senhor. Uma utopia das melhores.

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