MPLA morre um pouco mais
Angola está de luto. Hugo Azancot de Meneses, figura histórica da luta de libertação nacional e um dos fundadores do MPLA, deixou-nos para sempre ao sucumbir à doença que o devorava sem descanso há quatro meses. Apesar de viver longe de Portugal, ainda recentemente lhe levei por duas vezes à cama do hospital palavras de ânimo e carinho. Com o corpo inerte e extenuado que mal recusava já a obedecer-lhe, ele próprio estava consciente que a morte rondava próxima. Mas nem por isso as suas palavras titubeantes traíam o menor sinal de desfalecimento. Pelo contrário. Todo ele era vibrante no desejo de conversar sobre Angola e sobre a situação fatídica da guerra. "Como sair das garras desta situação?", eis a pergunta que logo soltou. Realmente Angola sempre fora um vício cultivado por nós em todos os encontros do passado. E, de novo, ali estávamos naquela circunstância preocupados com os destinos da pátria. "A morte que espere" - galhofou ele - "primeiro está Angola". Conversou-se de tudo um pouco nesse derradeiro encontro: do MPLA, a quem ele dedicou uma vida inteira em detrimento da sua profissão de médico; da UNITA de Jonas Savimbi, que ele considerou um erro histórico - de proporções trágicas - estar a ser descartada pelo governo de Luanda; de Holden Roberto, outro marginalizado, hoje tratado com sobranceria; dos jornalistas, que o Poder ofende na sua profissão sem o menor respeito pela liberdade de expressão; dos militantes mais sérios do MPLA, também eles atingidos pela onda de suspeição que varre o país; tudo, enfim, lhe aguçava o espírito para a conversa e nada o cansava. Felizmente nenhuma enfermeira havia por perto para nos incomodar. À medida, porém, que íamos desfiando estas coisas, uma leve crispação se lhe desenhava no rosto. "Gostava de morrer e ver o país em paz. Não uma paz qualquer. Mas uma paz que satisfaça todas as partes", rematou ele como que acreditando levemente nessa possibilidade. "Talvez ainda consiga lá chegar. Tenho esperanças de, em Londres, os médicos me porem bom". Aí, mais uma vez, os seus olhos se iluminaram de uma espantosa alegria, contrastando com o aspecto definhado do corpo. Angola pulsava-lhe no coração. Teimosamente jamais se lhe arrefeceram os velhos sonhos nacionalistas de há quarenta e tal anos quando com o canudo de médico debaixo do braço deixou Lisboa e foi para Londres e depois para Conakry para, ao lado de Viriato da Cruz, Mário de Andrade, Lúcio Lara, Eduardo dos Santos, Matias Miguéis e outros, pôr de pé o MPLA e engrossar a odisseia da luta de libertação em Angola já iniciada pela UPA. "Muita coisa ficou para trás" - segredava-me ele - "as decepções foram muitas. Contudo, os velhos sonhos não desapareceram, esses permanecem puros e intactos na minha alma". De facto, permaneceram e acompanharam-no até ao minuto final. Vezes sem conta me dizia: "Fazem-se hoje coisas em Angola que chocam profundamente, não se respeitam as populações, a corrupção tomou conta de tudo. A nossa luta não foi feita para isso mas para acabar com todo o tipo de constrangimentos e devolver a dignidade ao homem angolano. Angola precisa de ser novamente libertada".Confesso que, em toda a minha vida, foram raros os homens que conheci com a envergadura de Hugo de Meneses. Ele impunha-se sobretudo pelo seu invulgar perfil moral e por uma grande tolerância política inspirada nos mais edificantes princípios do humanismo socialista. Repugnava-lhe todo o tipo de constrições e de manejos obscuros. Cedo a sua rectidão de carácter o levou a incompatibilizar-se com métodos menos transparentes postos em prática pela direcção no MPLA, como aconteceu, por exemplo, em 1962, em Leopoldville, era ele membro do Comité Director. O secretário-geral era Viriato da Cruz. Preferindo afastar-se para o Ghana, criou ali, com dinheiro próprio, um serviço radiofónico que se ocupou da propaganda do movimento. Mais tarde, já regressado a Brazzaville onde o MPLA tinha o seu estado-maior, entrou em rota de colisão com Agostinho Neto, especialmente depois de um atentado à bomba que lhe foi dirigido e lhe danificou totalmente o automóvel. Salvou-se por um fio. O autor, pertencente às estruturas intermédias do aparelho partidário, seria deixado impune mesmo depois de Hugo de Meneses o ter denunciado a Neto. Este respondeu displicentemente que iria nomear uma comissão de investigação. Outras situações não menos desagradáveis o colocaram em confronto aberto e, inclusive, nos limites do irreconciliável com camaradas seus da Revolta Activa (pois ele foi um dos 19 signatários do "Manifesto" deste grupo). Isto porque uma fracção, obcecada no seu ódio ao presidente da República e sem perceber o que se passava à sua volta, advogava nos primórdios da independência nacional a necessidade de um golpe de Estado ou a criação de uma estrutura de guerrilha para combater o regime de Neto.No PRD (Partido de Renovação Democrática), que ele veio a integrar em 1992 juntamente com Joaquim Pinto de Andrade e Eduardo dos Santos na busca de uma alternativa democrática para o MPLA, não tardou também que o seu entusiasmo e optimismo desse lugar ao desencanto. Em vez da acção política construtiva, rápido o projecto inicial do partido emperrou, afundado num atoleiro de escândalos onde membros influentes da cúpula apareciam comprometidos com tráfico de favores de duvidosa proveniência."Sabe, querido amigo" - repetia-me ele em tempos - "apesar de tudo, valeu a pena. Desaprendi de ser médico, com esse ofício eu teria ganho muito dinheiro, escolhi a política, mas no fundo não me arrependo. Ao menos, contribui para a libertação de Angola". Contribuiu e de que forma! Em 1960 todo o elenco directivo do então recém-formado MPLA se instalou em Conakri graças às boas influências de Hugo de Meneses junto do governo da Guiné e do seu presidente Sekou Touré, de cuja família ele era clínico particular. Também outros, da Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, viram abrir-se-lhes as portas de par em par naquele país. A todos acolheu e alimentou em sua casa. Todavia, nunca até hoje nenhum desses países se dignou ter um gesto de agradecimento. Especialmente a direcção política do MPLA que não foi capaz de o homenagear, uma vez que Azancot de Meneses, sendo de origem são-tomense, desde o início tomou o partido por Angola e pela sua luta armada. Azancot de Meneses encolhia os ombros, muito no seu jeito brando e sentenciava: "os homens são ingratos". Apenas o magoava lembrar a desfeita de Agostinho Neto para com ele já depois da independência em 1975. Um dia pediu ao presidente que não se esquecesse de o honrar com o estatuto de cidadão angolano, atenta a sua participação na luta. Resposta imediata de Neto: "faz o pedido ao ministro da Justiça". Atónito com este descaso, Hugo de Meneses lembrou que outras pessoas, de nacionalidade portuguesa, haviam sido cumuladas com tal distinção por despacho dele [presidente] e a ninguém se exigira semelhante formalidade. A isto, Neto retorquiu: "então, arranja três abonações junto de membros do Bureau Político". Apenas conseguiu duas, passadas por Iko Carreira e Rodrigues Kito. Entretanto, a República de Brazzavile, sabedora deste vexame, preparou-se para lhe conceder a cidadania congolesa por ordem do próprio presidente Marien N?Gouabi que conhecia bem o passado político de Hugo de Meneses. Neto, porém, informado do que passava mandou o ministro das Relações Exteriores contactar com ele. O governo de Angola decidira rectificar a sua posição. Dias depois Hugo de Meneses ia à Direcção Nacional de Fronteiras levantar o passaporte angolano. Mesmo assim, Neto jamais seria capaz de firmar um despacho a emprestar dignidade àquele passaporte.*historiador angolano