Confissões de uma escritora de canções
Creditada como sendo uma pioneira no campo da "canção confessional", é apenas agora, aos 55 anos, que Joni Mitchell é capaz de falar abertamente sobre o trauma pessoal que está por trás das canções de álbuns clássicos como "Blue". Pela ocasião do lançamento do novo disco, "Both Sides Now", em que revisita algumas das suas glórias anteriores, a lendária Mitchell conduz-nos numa viagem pela sua história pessoal.
Joni Mitchell poderá não ter desencadeado o fenómeno da canção confessional, mas sem dúvida que trouxe este estilo para a ribalta, o que é atestado pelo seu álbum "Blue" de 1971, que se caracteriza pela natureza "confessional" das letras e pela utilização de uma linguagem tão precisa e tão poética que não deixa espaço para o desperdício."A ênfase nas letras começou, julgo eu, com Dylan", diz Joni Mitchell. "Foi aí que eu aceitei o desafio. Sempre escrevi poesia, mas nunca gostei de poesia! Escrevia-a apenas quando me encontrava emocionalmente perturbada. Tal como quando um amigo meu no liceu se suicidou. Havia coisas que me faziam ir para casa e escrever. Depois guardava tudo numa gaveta e, por vezes, aproveitava esses escritos para as minhas aulas de Inglês. E, de facto, no liceu eu era reconhecida como uma escritora. Contudo, nunca baseei a minha identidade nesse reconhecimento. Para além disso, gostava de dançar, logo as letras pouco me interessavam. Ficava satisfeita com 'Tutti Frutti'."Joni admite não ter ficado impressionada quando Bob Dylan apareceu pela primeira vez no panorama musical - sobretudo porque ele lhe parecia um 'macaco de imitação' de Woody Guthrie. "Eu tenho esta necessidade de ser original", explica. "Os astros já assim o diziam. Eu nasci no 'Dia do Descobridor', o que julgo ter tido uma influência profunda nesta minha necessidade. Além disso, como sempre fui pintora, sinto essa necessidade para descobrir uma nova voz, enquanto os músicos se limitam a seguir uma tradição. Quando ouvi uma canção de Dylan chamada 'Positively Fourth Street', pensei: 'Oh, meu Deus, pode-se escrever letras sobre qualquer coisa.' Isto foi uma revelação para mim."Também se poderia dizer que a música constituía uma forma de cura espiritual para Joni Mitchell. Na sua biografia "não oficial" recentemente publicada, "Both Sides Now", Brian Hinton refere que o desejo de dançar de Joni aumentou quando lhe foi diagnosticada uma poliomielite. Foi uma experiência traumática. Não só teve que sofrer horrores com o tratamento, como lhe foi dito, a esta menina de nove anos, que provavelmente nunca mais poderia vir a andar. Joni Mitchell, demonstrando uma forte determinação, que aliás a caracteriza desde então, insistiu em que voltaria a andar. Enquanto umas freiras, mais cépticas, empurravam a sua cadeira de rodas numa longa rampa e a deixavam sozinha a tentar fazer a caminhada mais árdua, ela só tinha um pensamento: "Se a doença se alastra até aos pulmões, estás condenada a passar o resto da tua vida com um pulmão de aço. Estou a ouvir o pulmão de aço a arquejar como música de fundo." Durante o ano da sua recuperação em casa, desafiou ainda mais a sua doença, decidindo tornar-se não apenas uma bailarina, mas aquilo que Bobby Darin descreveria como a 'Rainha da Dança'. Praticava todos os dias, usando como parceiro a maçaneta da porta do seu quarto. E logo depois foi vista a girar em turbilhão nas pistas de dança de rock'n'roll na cidade de Alberta, num período da sua vida que Joni Mitchell celebra na canção "In France they kiss on main street". Brian Hinton também sugere que foi durante a sua estada no hospital que Joni descobriu as alegrias da pintura. Depois de lhe terem dito que não iria a casa nas férias de Natal, alguém lhe deu aquilo que ela mais tarde viria a chamar "um livro de pintar com imagens de cantores ingleses fora de moda e com letras de cânticos de Natal". A jovem Joni, além de ter transformado esses espaços em branco num caleidoscópio de cores, também apregoou os cânticos tão alto quanto podia. "Para que os outros miúdos ouvissem."Durante o liceu, Joni Mitchell acompanhava de perto o trabalho de Miles Davis, Lambert, Hendrix e Ross. "Eu absorvi muito rock'n'roll antes de ter entrado na folk e eu penso que as pessoas tendem a esquecer esse facto, especialmente aquelas que me classificam como cantora folk, algo que não sou desde 1964. Quando comecei a gravar, em 1967, aquilo que eu fazia era mais do género folk-rock. O desafio consiste em sintetizar no tempo variadíssimas sequências musicais." A partir do álbum "Blue", Joni afirma que se tornou "uma escritora, uma testemunha" da vida. "Eu tinha essa habilidade e estava à procura de assunto, coisas pertinentes sobre as quais escrever. Via toda esta luta social tremenda à minha volta. E tentava projectar as coisas no futuro - tenho esta tendência para olhar para a frente. E nem sequer me ajustava bem à minha geração."Espiritualmente deslocada? "Eu não me sinto deslocada na minha vida pessoal, tenho amigos fantásticos", responde. "No que toca à espiritualidade? Para dizer a verdade, nunca encontrei uma ortodoxia religiosa em que pudesse acreditar. Mas já não me sinto espezinhada, tal como costumava sentir-me. Agora estou muito mais segura e estável."De súbito, Joni Mitchell fica pensativa. "Mas senti a ferroada da hipocrisia religiosa. Eu era muito doente enquanto criança. No entanto, a irmã Mary Louise, disse-me uma vez: "És exactamente aquilo que preciso.' Ela pensava que eu era um Thomas Merton, pelo que tentou converter-me ao catolicismo, pensando que eu era divinamente inspirada! Até o meu trabalho se ter tornado bastante carnal, actuei em reuniões de freiras, para esta irmã, e ela acreditava realmente que eu tinha como que uma feição divina."Joni compreende porque é que cada vez mais pessoas se viram para as drogas em busca de uma "sensação divina", temendo que toda a espiritualidade verdadeira tenha desaparecido da sociedade contemporânea? "Compreendo", diz ela num tom suave. "Nunca fiz 'disparates'. É melhor não começar! E se gostasse?"Alguns músicos de jazz dizem ser a única maneira que conhecem de "beijar Deus". "Bem, isso resultou com Charlie Parker, mas a que outros saxofonistas é que isso serviu?", contrapõe Joni. "E, mesmo que ele tenha morrido como um homem relativamente jovem, num corpo de 70 anos de idade, existiu, em termos budistas, uma profanação do templo, o que me parece ser a via do cobarde."Joni Mitchell dificilmente poderia ser descrita como "cobarde". Fazendo novamente referência ao álbum "Blue", ela disse uma vez que era provavelmente o disco mais puro do ponto de vista emocional que alguma vez fez. "Escrevi todas aquelas canções, porque assim tinha de ser. Estava emocionalmente perturbada, o que, como disse, fazia emergir a poeta que havia dentro de mim. Tive algumas mudanças de vida bastante duras. Aquilo que aconteceu foi que eu tive que entregar a minha filha para a adopção, por causa da pobreza, porque não tinha dinheiro para a alimentar, para a vestir ou para lhe dar uma casa." Kilauren é a filha sobre quem a Joni cantava em 'Little green' do álbum "Blue". "A altura do seu nascimento foi muito traumática para mim", continua Joni. "É por isso que eu me podia identificar com as mulheres que eram enviadas para as lavandarias Magdelene na Irlanda, sobre as quais escrevi na canção 'Turbulent indigo". Quando estava grávida e à procura de uma instituição para me esconder, fui a lugares como o Salvation Army, mas não fui aceite. Havia muitas pessoas exploradoras que se dirigiam a ti, pelo que acabei por ficar a viver no sótão de um chinês traficante de escravos, até que fui avisada: 'Sai daí, ele está apenas à espera que dês à luz.'"Há alguns anos atrás voltou a reunir-se a Kilauren, ainda que este processo permaneça "difícil", admite. "Agora mesmo ela está a atravessar algumas mudanças e deixou de conviver comigo; portanto, ainda temos muitas coisas por trabalhar. No início, eu estava preparada para isso. É bastante típico. Mas veio tarde. Não se trata de um conto de fadas! É a vida." Joni Mitchell pode não ter voltado a fazer um disco tão cru e revelador como "Blue", mas os álbuns subsequentes, "Court and Spark", "The Hissing of Summer Lawns" e "Hejira", nem por isso foram menos magistrais. Estrelas do rock como Madonna, Annie Lennox e Prince citaram esses álbuns como tendo exercido uma influência seminal no seu trabalho. "Fiquei feliz quando li que Prince, em particular, disse que 'Hissing' era o seu álbum favorito", observa Joni. "De todos os meus álbuns, esse foi derrotado em público! O que parece que coincidiu com um ponto de viragem de alguns dos meus fãs. E isso aconteceu quando eu mudei o 'eu' de álbuns como 'Blue' para 'tu'. Mas não passava de um instrumento dramático. Eu continuava a tirar muito desses personagens de dentro de mim. Portanto, não vejo essa enorme divisão que os outros vêem entre os álbuns antes de 'The Hissing of the Summer Lawns' e aqueles que se lhe seguiram."A diferença entre "Court and Spark" e os álbuns posteriores deve-se fundamentalmente ao regresso de Joni Mitchell às suas raízes jazzísticas, mudança essa que não só confundiu alguns dos seus fãs, como também decepcionou os críticos, alguns dos quais afirmavam que as suas melodias de jazz eram mais fracas do que as de canções mais antigas. "Na época de 'Hejira' permiti que a poeta tivesse primazia sobre a cantora", refere Joni. "Aquilo que sinto é que muitas dessas canções eram, de facto, superiores às anteriores. E, no entanto, eram 'melodias de jazz'!" A faixa "The jungle line" de "The Hissing of the Summer Lawns", por exemplo, mostra-nos Joni a tocar um sintetizador moog e a fazer experiências com estruturas de corda arrastadas que flutuam sobre uma faixa de ritmo roubada aos tambores dos guerreiros do Burundi. Isto equivale a dizer que Joni Mitchell estava a tactear a world music mais do que uma década antes de Paul Simon. Antecipava também, em mais de 20 anos, o som drum'n'bass dos anos 90. A esta sofisticação musical acrescenta-se o facto de Joni justapor a todo o seu primitivismo africano uma letra que satiriza a "aristocracia" de Hollywood. E isso constitui apenas uma faixa de um álbum espantosamente magnífico! E relativamente à composição? "A música chega primeiro e traz a forma rítmica. Mas eu não trabalho a partir de uma mentalidade de pentâmetro iâmbico..."A mistura do pessoal com o profissional remonta ao primeiro álbum de Joni, produzido por David Crosby, que era também seu amante na altura. O facto de Crosby ter dito recentemente que Joni é "tão modesta quanto Mussolini" sugere que hoje em dia vê Joni Mitchell de modo bem diferente. O jornalista Nick Kent descreveu Mitchell como sendo "inacreditavelmente pretensiosa", dizendo que "ela entrava num quarto e, se precisasse de alguma coisa, pedia a outra vedeta que fosse pedir a um comum mortal que lhe trouxesse uma bebida". Talvez fosse assim nos anos 70. Mas Joni em convívio atrás de um palco em Madison Square Gardens em 1998, com o seu actual e elegante Donald, não proporciona a mínima evidência que confirme essa tendência. "Se continuo a ver-me como uma romântica? Eu diria que sou mais uma idealista, uma característica que não neutraliza, necessariamente, o cinismo. Lembro-me de estar com o meu pai a ver as notícias sobre a chegada de Clinton ao Canadá, em que ele [Clinton] comentava como sempre tinha gostado da minha música. E eu disse: 'Ele nunca diria tal coisa se estivesse a falar para uma multidão na América, ele está apenas a tentar seduzir o público canadiano.' E o meu pai disse-me para eu parar de ser tão cínica! Mas, quando estoirou toda aquela história à volta de Monica Lewinsky, ele disse-me: 'Talvez tivesses razão em relação ao Clinton!' E é esse tipo de cinismo que está presente em muitas das minhas canções, começando pelo 'The last time I saw Richard' e por aí em diante. Enfim, gostava de pensar que mantive esse equilíbrio na minha natureza, entre romantismo e cinismo. Cinismo saudável!" Esse cinismo, saudável ou não, é notório em 'Taming the tiger'."O que é vendido nos dias de hoje é como que uma versão degenerada daquilo que a nossa geração criava", diz furiosa. "O filho de Bob Dylan não é tão bom como Dylan, mas ultrapassa-o 20 vezes nas vendas. Talvez eu não devesse dizer isto, mas que se lixe! Algures neste percurso a indústria musical, de certa forma, anulou-me. É como se investissem em pessoas como eu mais pelo prestígio e pelo dinheiro que poderá vir a ser feito connosco do que pelo facto de realmente acreditarem na singularidade da nossa proposta musical. É isto que sinto a maior parte das vezes. Não importa aquilo que faça, serei sempre comparada, de modo desfavorável, com o meu trabalho anterior. Seja "Blue", "Court and Spark", não interessa. Por isso penso muitas vezes em deixar tudo para trás, que o melhor seria dedicar-me apenas à pintura. Afinal de contas, no liceu, o meu grande objectivo era ser uma artista das artes visuais, antes de ter escolhido a música como segunda ocupação." Estes comentários foram feitos no ano passado, antes de Joni ter concluído o seu novo álbum, "Both Sides Now". E trata-se de um tipo de álbum tributo enraizado não numa aridez criativa - como é muitas vezes o caso dos escritores de canções -, mas num genuíno amor pela música. Joni fala da inspiração que está por trás do êxito repentino deste novo disco. "Eu participei há uns anos atrás num concerto de Verão ao ar livre, muito prestigiado, onde cantei uma canção de Billie Holiday com uma orquestra enorme", recorda. "E trouxe-me à memória toda a música gloriosa feita por Billie. E pelo Sinatra, quando trabalhou com pessoas como Nelson Riddle e Gordon Jenkins. Outra coisa da qual eu me apercebi nessa altura foi do quão bem eu me sentia pelo simples facto de saltar para cima de um palco e cantar. E pensei: 'Não seria maravilhoso gravar e andar em digressão com este tipo de coisas?'" E é exactamente isso que Joni Mitchell está a fazer neste momento, em digressão promovendo "Both Sides Now". Mitchell diz que este último álbum é o primeiro de uma trilogia. O segundo irá apresentar as suas canções num cenário sinfónico. E o terceiro álbum irá fazê-la regressar ao momento em que conheceu a música pela primeira vez, quando era criança e se encontrava hospitalizada, e cujo nome é, a título experimental, 'Have Yourself A Dreary Little Christmas'. Cínico? "Irá incluir quatro das minhas canções 'qualquer coisa má acontece sempre no Natal', quatro canções de Natal antigas e quatro cânticos. E estou a pensar fazer uma peça a partir deste álbum", explica. Inovadora como sempre, Joni vê agora o seu último álbum, bem como os álbuns que foram de seguida propostos, como "peças musicais". "Um comentário sobre o amor romântico do século XX", eis como Joni Mitchell descreve o seu novo CD, "Both Sides Now", um álbum conceito que contém regravações da faixa título e ainda 'A Case of You', uma canção de Joni de 1971, de luxúria e amor, para Leonard Cohen. O álbum apresenta maioritariamente versões de dez outros temas que são, segundo a Reprise Records, "uma selecção eclética, em que cada canção mergulha na História, ao lado de Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e Billie Holiday". "Neste momento estou num ponto da minha vida em que preciso de inspiração e, ao mesmo tempo, estou com sérias dificuldades em encontrar música que me consiga inspirar. Mas Ella e Billie conseguem, não obstante as suas diferenças. É por isso que quero fazer um álbum que lembre às pessoas alguma da melhor música feita. Talvez seja uma coisa de fim de século, ou que tenha que ver com o facto de que após a morte de Frank Sinatra se tenha descoberto um novo interesse pela era do swing. E eu adoro essa música. Está-me no sangue."