Um génio. Do Mal?
Olham-se os seus filmes e conclui-se: ela é um génio! Olham-se os seus filmes e grita-se: ela é nazi! Leni Riefenstahl foi abençoada com talento e amaldiçoada com várias coisas. Ainda hoje, com quase 98 anos, lhe fazem a pergunta de sempre: "Foi amante de Hitler?" Ela teve imensos namorados, muitos amantes, e jura há mais de 50 anos que o chefe nazi a hipnotizou, como a milhões, mas não a levou para a cama. Não importa. Será sempre a namoradinha de Hitler.
A notícia que se aguarda sobre Leni Riefenshtal é a da sua morte. Não é um desejo macabro, só que não pode aguardar-se muito mais quando alguém vai fazer 98 anos no dia 22 de Agosto. Mas o extraordinário na última notícia conhecida sobre Riefenstahl, nos primeiros dias de Março, era que ela tinha sobrevivido à queda de um helicóptero no Sudão. Várias costelas partidas, o desejo de reatar assim que possível mais um trabalho fotográfico com tribos quase perdidas nas margens do Nilo.Morte adiada, pois. O episódio quase trágico, quase derradeiro, contém de certa forma um resumo da vida atribulada de Helene Bertha Amalie Riefenstahl: teimar, sobreviver, viver. É irónico que isto também se possa resumir no mote do comício nazi em Nuremberga que ela filmou e, num processo de alquimia artesanal, transformou numa das obras-primas que a arrastaram para a maldição: "O Triunfo da Vontade".Há mais de sessenta anos que Riefenstahl é a cineasta do nazismo, a favorita de Hitler. O rótulo nunca vai descolar dela, já é tarde, que nunca ninguém lhe fale de "reabilitação", mesmo quando escuta aplausos imensos nas sessões especiais onde os seus filmes são projectados. Melhor do que ninguém, e isso está por todo o lado na autobiografia de 1985, ela sabe que o seu talento foi a sua perdição. Desde criança, Leni mostrou sempre três coisas: talento, teimosia e atrevimento. Talento para actividades atléticas, para o teatro, para a dança; teimosia para contrariar as furiosas recusas do pai, um comerciante berlinense de aparelhos de aquecimento e ventilação, em permitir que ela se aproximasse sequer do "depravado" mundo artístico; descaramento para forçar encontros com quem lhe interessasse, profissional ou amorosamente.Conivente com a mãe, escondeu do pai que tinha aulas de dança e aos 16 anos conheceu os primeiros grandes aplausos num recital de dança a solo. Foi um momento de glória - e de tragédia: o pai soube de tudo e, colérico como sempre, mandou o advogado iniciar um processo de divórcio. Ela prometeu não pensar mais no palco, a vida familiar normalizou, mas quem acabou, anos depois, por ceder, foi o pai, que aceitou que ela recebesse aulas de dança: "Pessoalmente, estou convencido de que tens pouco talento e nunca serás mais do que medíocre, mas não te quero dar motivos para dizeres mais tarde que destruí a tua vida, ou arruinei as tuas hipóteses de uma carreira. Vais receber o melhor treino possível e tudo o resto dependerá de ti e só de ti." Estudou com uma teimosia que lhe permitiu ultrapassar acidentes em que partiu ossos dos pés por três vezes, até chegar ao primeiro recital, em Outubro de 1923, em Munique. Os críticos ficaram aos seus pés, a dança levou-a a todos os grandes palcos da Alemanha, à Áustria, à Suíça. Por fim, Praga, a sala com três mil lugares onde só a grande Anna Pavlova tinha dançado antes. Uma apoteose, um triunfo, mais uma pirueta, um salto em palco, e um joelho que estala - uma dor insuportável, a dança, a grande dança, arquivada para sempre.Meses depois, já em Berlim, a caminho de mais um médico, uma visão quase mística de um cartaz de um filme numa parede do metro empurra-a para uma sala de cinema próxima para ver "Montanha do Destino", um documentário sobre as montanhas Dolomitas, de Arnold Fanck. Ficou maravilhada: viu o filme dias a fio. A seguir ao encantamento, o atrevimento: Leni tentou tudo para encontrar Fanck e conseguiu. De caminho, enfeitiçou-o, com a sua beleza e o olhar levemente estrábico, atirou o realizador para três dias e três noites de escrita ininterrupta até que ele lhe surgiu junto à cama do hospital (mais uma operação) empunhando um argumento em que vinha, na capa: "A Montanha Sagrada - escrito para a dançarina Leni Riefenstahl".Fanck estava evidentemente apaixonado, mas nunca foi um dos homens da vida de Leni. Ela esperou até aos 21 anos pela primeira experiência sexual (desastrosa, segundo as memórias), mas tinha deixado algumas paixões por corresponder, incluindo um rapaz que a horas mortas resolveu ir cortar os pulsos a casa dela e passou lá a madrugada escondido, a sangrar, até ser levado de manhã ao hospital, pela mãe, para que o pai de nada soubesse.Em 1925, um ano e meio depois da visão do cartaz, Leni Riefenstahl já estava no seu novo meio, o cinema, agora que a dança como carreira principal estava terminada. Estava entre Fanck e a estrela masculina Luis Trenker, os dois enamorados, ela envolvida com o actor, o primeiro homem com que sentiu alguma coisa "próximo de felicidade", "um ambiente tenso" na rodagem. Tudo isto no meio das montanhas, um frio intenso a cortar, condições atmosféricas terríveis, a neve e o gelo a impedirem a rodagem. Fanck foi mais do que um realizador, foi um mestre. De direcção, claro, mas também de montagem, e os filmes que Leni iria realizar mostram que ela aprendeu bem todas as lições. Com a mesma equipa, mais um segundo realizador, G.W. Pabst (o de 'Lulu') rodou, em 1928/29, "O Inferno Branco de Piz Palü", outra vez a neve, o gelo, acrobacias impossíveis, ela feita cabra-montês, descalça a subir pelas escarpas. Era outro documentário com pessoas, pelo meio mais uma paixão, agora intensa, com um operador de câmara, Franz Schneeberger, "A Pulga da Neve", um veterano da Primeira Guerra que iria trocá-la por outra, um dia mais adiante.Nas suas memórias, Riefenstahl atribui-se o crédito de ter indicado Marlene Dietrich a Josef von Sternberg como a actriz ideal para fazer de "Lola" em "O Anjo Azul". Von Sternberg, claro, iria apaixonar-se por Leni, a quem chamava Du-Du, e ela a manter a distância da amizade. Na estreia de "O Inferno Branco...", Von Sternberg ficou impressionado: "És excelente. Posso transformar-te numa grande estrela. Vem para Hollywood comigo!". Escreveu Riefenstahl: "Depois da guerra, lamentei muitas vezes não ter ido para a América com Sternberg".O êxito dos filmes exigia mais, e "A Luz Azul" (1932) e "S.O.S Iceberg" (1933), filmando na Gronelândia, foram outra vez recebidos de maneira entusiástica. Sempre com gelo à volta. Em "A Luz Azul", Riefenstahl fazia de Junta, a rapariga da montanha, e o filme foi marcante. Nas suas palavras "não tanto por ter sido a minha primeira tentativa bem sucedida como produtora e realizadora, mas porque Hitler ficou tão fascinado pelo filme que insistiu em que eu fizesse um documentário sobre o comício do partido em Nuremberga."Como se conheceram, ela e Hitler? Mais uma vez, o atrevimento. Nas memórias, Riefenstahl conta que, um dia de 1932, em Berlim, decidiu por impulso assistir ao seu primeiro comício político, onde Hitler ia falar. Quando ouviu a sua voz, teve "uma visão quase apocalíptica", sentiu-se "paralisada", "fascinada". Enviou uma carta a Hitler, queria conhecê-lo melhor, ainda que um amigo judeu a tivesse avisado de que ele era uma personagem "brilhante mas perigosa". Hitler respondeu-lhe. Encontraram-se, a passear numa praia, o futuro ditador a confessar-lhe a sua admiração, a dizer-lhe: "Quando chegarmos ao poder, tem de ver os meus filmes." Leni respondeu-lhe que não, que nunca faria filmes por encomenda. Mas voltaram a encontrar-se, de novo por iniciativa dela, já no meio dos Goebbels, e dos Görings, e dos Hesses, a confraternizar com todos, envolvida ao ponto de a visitarem em sua casa, ao ponto de Goebbels chorar agarrado aos seus joelhos, a dizer que ela tinha de ser amante dele. Pôs porta fora o futuro ministro da Propaganda.A proximidade com Hitler e a elite nazi impediu-a de cumprir a promessa de nunca fazer filmes por encomenda. Primeiro foi "A Vitória da Fé", depois "O Triunfo da Vontade", filmes-comício dos nacional-socialistas, em que, conta, teve de lutar contra um Goebbels e uns generais despeitados. Noite de estreia de "O Triunfo da Vontade": "O final do filme foi saudado por aplausos demorados, quase intermináveis. Nesse momento, as forças faltaram-me completamente. Quando Hitler me agradeceu e me entregou um pequeno ramo de flores senti-me fraca - e depois desmaiei".A realizadora argumenta que a gigantesca tarefa a que meteu ombros a seguir - filmar os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim - não foi uma encomenda do partido, mas das autoridades olímpicas. "Olympia", que finalmente acabou dividido em duas longas partes, foi uma empresa monumental, em termos de proezas técnicas e de montagem (quando tudo acabou havia 400 quilómetros de película para editar). Ela inventou, esgotou-se ao longo de ano e meio. Não terá sido coincidência que a obra-prima olímpica tenha estreado no aniversário do Führer em 20 de Abril de 1938.No seu livro de Memórias, Leni Riefenstahl já não invoca, neste momento, a ignorância do que se passa numa Alemanha em nazificação acelerada e n'uma Europa que galopa para a guerra. Mas afirma que não sabia de muito, que estava mergulhada no seu trabalho artístico.Já multi-premiada na Europa, é em 1938 que vai em digressão aos Estados Unidos, uma viagem marcada pela política, em que a mesma pergunta surgia invariavelmente: "É amante de Hitler?" E a mesma resposta: "Não. São boatos falsos. Só faço documentários para ele." A viagem foi um fracasso, abalroada por protestos, por notícias hostis, pelo ostracismo. Contaram pouco críticas como a que surgiu no "Los Angeles Times" sobre "Olympia": "Este filme é um triunfo da câmara e um épico do ecrã. Ao contrário do que dizem os rumores, não é de forma alguma um filme de propaganda, e como propaganda para qualquer nação o seu efeito é absolutamente zero." Ninguém quis distribuir o filme olímpico.A guerra tornou uma ficção o filme a que a realizadora meteu ombros a seguir. "Tiefland" , começado em 1940, só iria ser concluído em 1954, e é o seu último. Na autobiografia de Riefenstahl, a descrição deste período, mais ainda do que outros, reforça a ideia de que a sua relação com a realidade sofria de uma distorção total. Com a guerra a devastar a Europa e o Mundo, a realizadora vai-se preocupando em tornar possível o seu filme impossível, em arranjar cenários, lobos domesticados, técnicos, aldeões que façam de actores. Como se nada se passasse ao seu redor. Ou não?30 de Março de 1944, impressões a propósito do último encontro com Hitler, para lhe "apresentar" o marido, Franz Jacob: "Não é fácil descrever as minhas reacções a Hitler nesses dias. Por um lado, estava-lhe extremamente grata por me ter protegido de inimigos como Goebbels e outros, e por me respeitar como artista; mas fiquei indignada e envergonhada quando regressei das Dolomitas no Outono de 1942 e, pela primeira vez, vi judeus obrigados a usarem uma estrela amarela. Só depois da guerra soube pelos Aliados que tinham sido levados para campos de concentração e exterminados."Quando a guerra acabou, com o irmão, três anos e meio mais novo, morto num campo de batalha, Riefenstahl foi obviamente acusada de nazi. Fazia parte do círculo glamoroso de Hitler, fazia-lhe filmes de propaganda. Presa no Tirol austríaco, para onde fora trabalhar em "Tiefland" enquanto tudo caía, passou por prisões e interrogatórios, mas os norte-americanos foram rápidos a assinar-lhe a reabilitação, logo em 3 de Junho de 1945.Obcecada, a realizadora regressou ao trabalho, mas cometeu o erro de ficar no Tirol quando os franceses tomaram conta da zona. E, ao contrário dos norte-americanos, os franceses não tinham ajustado contas com ela: prenderam-na, meteram-na num asilo para loucos, só em Agosto de 1947 foi libertada, mas os processos judiciais arrastaram-se durante anos e só em 1950 foi tomada sobre ela uma deliberação definitiva: foi condenada como "compagnon de route" dos nazis.Nestes cinco anos, Leni Riefenstahl viu velhos amigos como Fanck e Trenker, os dos primeiros filmes, voltarem-lhe as costas ou difamarem-na, velhos amantes, como Schneeberger, negarem-lhe ajuda, o marido, Peter Jacob, divorciar-se, os seus filmes nas mãos das autoridades ocupantes.Catorze anos depois de iniciada a rodagem, em Fevereiro de 1954, "Tiefland" estreou. Foi o último filme assinado por Leni Riefenstahl. Ela quis fazer mais, mas quem iria dar dinheiro, abrir portas, ou autorizar filmagens feitas pela "amante de Hitler"? Ninguém.Decidiu-se por uma nova paixão, a fotografia, e isolou-se do mundo no Sudão, com os núbios, e no Quénia, retratando tribos locais, antes de se iniciar, em 1974 (tinha 72 anos e era então cortejada por "espíritos livres" como Andy Warhol ou Mick Jagger) na fotografia submarina, que continuou até hoje.Mas nem este refúgio na imagem fixa a colocou a salvo de todos os ataques. Numa crítica aos seus livros de fotografia, a revista "Der Spiegel" escreveu: "Leni Riefenstahl voltou a acordar. E o entusiasmo com que antes celebrou os cultos dos nazis e os corpos dos concorrentes olímpicos, está agora devotado aos cultos e corpos dos Nuba. Este entusiasmo revelou completamente como se manteve incorrigível a sua paixão pela força e pela saúde desde os dias da fé e da beleza. Para ela, os Nuba são, no fim de contas, nazis melhores, bárbaros mais puros, os verdadeiros teutónicos."Leni Riefenstahl confessa sentir que "viveu muitas vidas". Já percebeu há muito que nunca terá paz, por muitas mais que possa viver. Só a espaços, na imensidão de África, ou no mundo silencioso dos mares, onde não se ouvem aplausos ou gritos.