"Fugiu-me para o fado"
Podia ter feito carreira no fado. Preferiu permanecer fiel à sua Parreirinha de Alfama, onde cozinha e canta há mais de 50 anos. Voz e presença únicas do fado, Argentina Santos vai, finalmente, ter a sua consagração num grande espectáculo em Lisboa com a presença outros grandes fadistas. Vão lá estar todos os seus amigos. E afinal, como ela diz, "mais vale ter-se amigos do que dinheiro".
Fado é destino. O de Argentina Santos tem corrido quase sempre na sombra. Espectáculos esporádicos no estrangeiro, como no Festival de Edinburgo, há três anos, constituem excepção numa carreira que não o chegou a ser, se a compararmos, por exemplo, com as das suas contemporâneas Amália Rodrigues e Hermínia Silva. É hoje à noite homenageada no Coliseu, em Lisboa.A Parreirinha de Alfama, restaurante e casa de fados, tem sido desde há muito a sua casa. É aí que, todas as noites, dirige as operações na cozinha, onde confecciona um arroz de tamboril do qual só ela detém o segredo. É aí também, sempre que estão presentes "pessoas que gostam realmente de fado", que canta como só ela o sabe fazer. Sem concessões de qualquer espécie. "Não sei cantar a 'Casa portuguesa', não sei cantar os 'Caracolitos', o 'Cheira a Lisboa', essas coisas... Uma vez tentei cantar 'Uma casa portuguesa' e fugiu-me para um fado...". Fadista de corpo inteiro, Argentina Santos, nessas ocasiões espera "que os turistas saiam", para começar a cantar.O grande público ficou a conhecê-la um pouco melhor, graças à sua participação, como convidada, no espectáculo de Carlos do Carmo, realizado em 1994 no Centro Cultural de Belém.Carlos do Carmo que esta noite, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, será, por sua vez, um dos convidados na festa de homenagem à fadista sobre a qual o escritor Baptista-Bastos, no seu livro "Fado Falado", escreveu: "Tive, como diria o Eugénio de Andrade, um alumbramento com aquela mulher. Uma mulher absolutamente espantosa, em cuja cara se pode ler a geografia da cidade de Lisboa. Argentina Santos é um bairro, no que um bairro tem de mais específico e de mais resistente à aculturação. É também uma grande mulher do jazz, a voz humana em pleno voo". E é no silêncio que Argentina Santos melhor voa: "Não é improvisar, há é uns sítios em que é bonito fazer umas paragens".Argentina Santos está nervosa, perante a perspectiva de um momento que lhe vai ser absolutamente dedicado. "Estou quase doente", diz, reconhecendo a importância do acontecimento. Depois o nervoso passa. "Quando começo a cantar". "Fado menor" vai abrir o espectáculo, "uma coisa que já canto há muito tempo, o rei dos fados". Uma letra de Linhares Barbosa com música de Fontes Rocha e "Lágrima" são outros dos fados que Argentina Santos irá cantar no Coliseu, terminando com "Lisboa, casta princesa". "Sou alfacinha, gosto de cantar a minha Lisboa". Um final alegre, "para as pessoas sairem animadas" que contrasta com o outro fado, melancólico, que é o que Argentina Santos mais gosta de cantar. "São os que mais sinto. Os que falam da minha vida, de mim própria, onde cada frase, cada palavra, me fazem sentir coisas minhas". Além do autor de "Um Homem na Cidade" participam no espectáculo, Maria da Fé, Mafalda Arnauth, Camané, Jorge Fernando, Rodrigo e Carlos Macedo.Argentina Santos nasceu no bairro da Mouraria há 75 anos mas foi em Alfama que se estabeleceu desde os onze. E foi em Alfama, no Parreirinha, que cantou o fado pela primeira vez, em público. Quadras soltas, à desgarrada, do fado "Mouraria". Nunca mais se separou desta casa que desde então se tornou o seu segundo lar e local de romaria para quem gosta de complementar a espiritualidade do fado com os prazeres da boa mesa. Nunca quis, ou nunca teve oportunidade, de viver o fado de outra maneira. "Sabe, casei-me, o meu marido não era muito dessas coisas. E à parte isso as pessoas também se esqueceram de que eu existia. Foi só depois do Carlos do Carmo me ter chamado para o espectáculo dele que as pessoas começaram a dizer que sabiam que eu existia, que cantava... A verdade é que nunca tive muitos estímulos. Sou muito estimada pelos meus clientes e pelos meus amigos, mas quanto ao resto...Sabe, fui uma criança sem mimos, criada quase sozinha, tudo isso me vem à memória e agora sinto-me muito comovida, ao fim destes anos todos, mas mais vale tarde do que nunca, como costumo dizer. E ter-se amigos é melhor do que ter-se dinheiro". Terá sido a luz de Amália que tudo ofuscou à sua volta? Para Argentina Santos não terá sido a excelência da diva - "uma pérola que caiu do céu, uma voz divina como não aparece outra" - que fez esquecer as restantes vozes do fado que com ela coabitaram, mas "as pessoas que, realmente, entendiam que só deviam falar dela". "Mas havia mais gente a cantar bem nesse tempo", recorda a fadista para quem as vozes de Hermínia Silva, Maria José da Guia, Fernanda Maria e Anita Guerreiro eram as suas preferidas. Só esporadicamente o público teve oportunidade de ver e ouvir Argentina Santos cantar fora do templo. Em 1996, nas Festas de Lisboa, integrada no "elenco de ouro" (ao lado de Beatriz da Conceição, António Pinto Basto, Rodrigo e Carlos do Carmo) que em Junho actuou em vários locais da capital. No ano seguinte, no Teatro Nacional de S. João, do Porto, no espectáculo cénico-musical "Raízes Rurais - Paixões Urbanas", dirigido por Ricardo Pais. De novo nas Festas de Lisboa, nesse mesmo ano, desta feita ao lado de António Pinto Basto, Maria Armanda, Rodrigo e Vicente da Câmara. E em 1998, no tal espectáculo de Carlos do Carmo, no CCB, que catapultou o seu nome para as primeiras páginas dos jornais, colocando-o finalmente na lista dos mais importantes de sempre do fado. Em disco, Argentina Santos pode ser ouvida no CD "Meus Fados" ou na colectânea "Fados do Fado". Hoje à noite será a mais do que merecida consagração desta fadista que, ainda nas palavras de Baptista-Bastos, "canta como se estivesse a orar a um Deus desconhecido".