Devagar se vai ao longe
"Slow Motion" é um título irónico para um projecto de investigação ao mundo dos filmes feitos por artistas. Num tempo em que a linguagem da arte é muito marcada pela presença e pelos efeitos das imagens em movimento poderemos ver "como tudo começou" entre nós: do que ainda era cinema para o que já o não é. Através de mais de uma trintena de artistas e de mais de uma centena de obras.
Tudo começa nos anos 60. E no âmbito do que então era o movimento dos cineclubes e do cinema amador - e com exemplos que vão buscar ao absurdo surrealista e não ao verismo neo-realista a sua poética. Nos anos 70, as novas linguagens da arte internacional e um novo media, o vídeo, vão provocar alterações evidentes nos trabalhos. As obras dos artistas dos anos 90 conduzem-nos agora a um campo de cruzamentos infinitos. Tudo isto poderá ser visto e comentado no auditório da Escola Superior de Tecnologia, Gestão, Arte e Design (ESTGAD) das Caldas da Rainha, a partir da próxima 5ª feira, dia 4 de Maio. O comissariado é de Miguel Wandschneider e a organização de uma associação local, a Art Attack.A presença dos artistas no dia do lançamento e a posterior disponibilização dos filmes e eventualmente de outras obras na galeria anexa alarga o sentido do projecto que não é apenas um "arquivo morto": "Muitos artistas retomaram os seus projectos, refizeram-nos ou finalizaram-nos em função deste convite. Julião Sarmento e Fernando Calhau vão concluir um trabalho comum que tinham deixado a meio, Calhau vai concluir um outro,f+b f-bVítor Pomar vai montar trabalhos que nunca tinha concluído...", sublinhou Wandschneider ao PÚBLICO.A organização da iniciativa é cronológica - por data do primeiro filme de cada artista. Tudo começa com Carlos Calvet (1959), reconhecido participante do movimento surrealista, e salta para os anos 70 com Artur Varela (1973), artista com um percurso marginal ao conceptualismo então em voga. Ângelo de Sousa, Sarmento, Calhau, Pomar concluem as presenças típicas desses anos deixando os anos 80 como "classe" vazia, confirmação da diferença desses anos de regresso a técnicas tradicionais de expressão. Nos anos 90 tudo (re)começa com uma obra de João Paulo Feliciano (1991), primeira de uma explosão do vídeo na geração desta década: António Olaio, Miguel Soares, Noé Sendas, Ângela Ferreira, João Penalva, Rui Toscano, Ana Léon, Suzanne Themlitz, Filipa César, João Onofre, entre muitos outros. Nomes essenciais como Ernesto de Sousa, Noronha da Costa, Palolo, Ana Hatherly e Augusto Alves da Silva, num arco que vai dos anos 70 aos 90, por motivos muito diversos, não estarão presentes. Um exaustivo desdobrável por cada sessão dará corpo a um futuro catálogo."Venezia 1959", de Calvet, foge aos "clichés" turísticos, ou utiliza-os para os desmontar. A desmontagem é rítmica e torna a cidade numa música visual. A um terço do filme irrompe o Adágio para órgão e cordas de Albinoni que reforça a lógica contrapontística da obra. Em "Filme experimental", de 1963, dois homens e uma mulher cruzam-se sem nunca se verem no cenário tornado surreal do cais de Lisboa. Mais mediático é o filme "Momentos da vida do poeta" centrado na personagem de Mário Cesariny errando por Lisboa e defrontado-se com uma sucessão de acontecimentos absurdos. "Estudo de camioneta abandonada" parece, na sua objectividade e grandes planos parados, apontar linguagens posteriores da arte internacional. Do mesmo modo "Um dia no Guincho com Ernesto" (1969) foi reportagem humorística de um "happening" que não aconteceu -f+b f-buma acção orientada por Noronha da Costa, no âmbito das suas pesquisas sobre a imagem mas onde a figura de Ernesto de Sousa sobressai. Artur Varela, como uma estada prolongada na Holanda (onde residia desde 1964), surgiu em Lisboa com uma surpreendente exposição na SNBA, em 1973, da qual o material filmado era parte integrante. Há uma ironia essencial na sua obra. Os sucessivos "Perfis" de artistas portugueses (Manuel Baptista, João Hogam e José Escada) tomam o título à letra e filmam, de perfil, nuns intermináveis 3 ou 4 minutos, cada um dos personagens. Já "O burro" tem um plano frontal de 5 minutos que acaba por humanizar a presença do animal. "O homem e o peixe", "Souvenir de Vacances", "Le printemps en Algarve commence en Janvier", "Uma noite de televisão" ou "Marialva", alargam a visão a todo o país ironizando o seu provincianismo, os "clichés" turísticos, os comportamentos sociais. Atitude que é levada ao campo da política com "Marcelito", imagens mudas de uma "Conversa em Família", já de 1974, ou em "Viva Franco", do mesmo ano, em que uma frase gravada na paisagem espanhola (espécie de ingénua "Land Art" fascista) é sucessivamente aproximada e afastada em violentos efeitos de zoom.