Sampaio à redescoberta do Brasil
Quinhentos anos depois de Cabral achar o Brasil, Sampaio atravessa o Atlântico para celebrar a história. Uma história que viveu da construção de uma nação onde, apesar de todas as misturas inventadas, permanecem divididos brancos, pretos e encarnados, num chorrilho de contradições sociais que condicionam esta comemoração, afastada das manifestações populares que se concentram já à volta de Porto Seguro. Mas onde haverá lugar para a assinatura de um novo acordo luso-brasileiro, bem como a uma mensagem do Papa. Uma visita que é também um percurso pela história e pela cultura do Brasil e durante a qual o PÚBLICO lhe apresentará as reflexões de viagem do Presidente, que se estreia hoje com um texto sobre os 500 anos, em que assume a história de que se orgulha, mas também aquela em que não se revê, como a da escravização de outros povos.
Porto Seguro, núcleo das comemorações oficiais dos 500 anos do descobrimento do Brasil, vivia ontem dias aparentemente calmos se não fosse esta uma cidade turística em Semana Santa. A presença da Polícia nãoera ostensiva - sabe-se, porém, que a cidade está cheia de agentes da Polícia Militar, da Polícia Federal e das Forças Armadas, à paisana. É com este clima que Jorge Sampaio inicia hoje em São Salvador da Bahia a sua participação nas comemorações dos 500 anos da descoberta. Uma presença feita na qualidade de Presidente da República de Portugal, país achador da terra que foi sua colónia, sua capital de reino, depois império e, por fim, república e que, passado o pesadelo da ditadura militar, tenta aprender, há duas décadas, a crescer em democracia e a redescobrir-se como nação.É nas contradições dessa redescoberta que Sampaio amanhã mergulha, depois de hoje reservar a tarde para conversar com o Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, em encontro privado que decorrerá na península de Comandatuba, litoral de São Jorge de Ilhéus.Isto porque as cerimónias a que os dois chefes de Estado amanhã presidem em Porto Seguro estão condicionadas precisamente pela pressão descoordenada da dinâmica de construção da democracia brasileira. Uma profusão de manifestações populares que têm sido feitas ou anunciadas e que ameaçam "invadir" Porto Seguro (ver caixa), apesar de as celebrações oficiais, numa quase paranóia securitária, tentarem fugir-lhes. Expoente máximo dessa contestação foi a "invasão" do Senado pelo índio Henrique Suruí, em vestes tribais, protestando contra a presença policial em Coroa Vermelha e apontando uma seta, a menos de meio metro, do presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, ex-governador da Bahia.Há, por outro lado, quem atribua o cancelamento de pontos do programa pelo menos em parte ao facto de Fernando Henrique Cardoso viver um momento difícil em termos de popularidade, pelo que é desaconselhado a expor-se em situações em que o seu poder é de algum modo contestado.Inicialmente previstas para incluírem uma espécie de reconstrução do imaginário no que se refere ao encontro de civilizações, as cerimónias oficiais ficaram, deste modo, reduzidas às iniciativas marcadas para Porto Seguro - supostamente a primeira praia onde aportou a frota de Pedro Álvares Cabral -, tendo sido anulada a visita à reserva índia da aldeia de Coroa Vermelha, entregue aos índios pataxós e instalada no território que foi outrora povoado pelos tupinambás, com quem as caravelas de Cabral se depararam ao achar aquelas paragens.Os pataxós, que receberam a terra em herança, que nela vivem como peças de um museu turístico-histórico-ecológico de índios e caboclos e que insistiam em comemorar à sua maneira a chegada dos portugueses, viram as suas intenções goradas pelo poder central "branco" (palavra que no Brasil é não tanto sinónimo de cor da pele mas de classe dominante). Os mesmos pataxós que ameaçam fazer amanhã manifestações de protesto e de afirmação de identidade também em Porto Seguro. Tal como poderão fazer e têm feito os sem-terra, espécie de deserdados da sorte da história brasileira que ficaram de fora na construção de um país à imagem do descobridor: com uma estrutura terra-tenente de tipo latifundiário, só que proporcionalmente ampliada à dimensão do país enorme que é o Brasil, produzindo megalatifúndios.Nesta ameaça de explosão de protestos com que os diversos "brasis" fazem questão de comemorar a sua existência e de se afirmarem como "os genuínos" e únicos, apesar da "misturada" que resultou da miscigenação proclamada pelo sociólogo Gilberto Freyre, cabe também um lugar aos pretos, os herdeiros da escravidão que construiu o Brasil e em especial a Bahia dos engenhos de açúcar. Ainda que este seja talvez o protesto anunciado com menos impacto mediático: o do movimento Os Outros Quinhentos, o do Brasil que também descende de Angola, que até já tem o seu Dia da Consciência Negra (assinalando a morte, a 20 de Novembro de 1695, de Zumbi, Rei dos Palmares, aldeias de escravos fugidos), que até já tem orgulho na palavra "mulato" e começa a deixar cair a envergonhada palavra "moreno", mas que não é enquadrável em folclóricas reservas, nem está representado nas estruturas de poder.Assim, reduzidas ao Porto Seguro, a cidade que nasceu na enseada a que eventualmente primeiro aportaram as gentes de Cabral, as cerimónias consistem num almoço oficial oferecido por Fernando Henrique Cardoso, após o que os dois presidentes passearão a pé pelo centro histórico. Sampaio e Fernando Henrique plantarão então uma simbólica árvore de pau-brasil, espécie que deu nome ao país, e visitarão a Igreja de Nossa Senhora da Pena. Através da marginal que os dois presidentes percorrem vão desenvolver-se exibições de danças folclóricas.Durante esta visita a Porto Seguro, os dois chefes de Estado assistirão ainda a uma regata onde participa o navio-escola Sagres, que viajou de Portugal inserido na reconstituição da rota de Cabral, mas que acabou por ficar fundeado ao largo e não desembarcará a sua guarnição em Porto Seguro, também devido aos alegados riscos de segurança.E, será nesta volta, ao visitarem o Museu de Porto Seguro, que os dois ministros dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama e Luiz Felipe Lampreia, assinarão o novo Tratado de Cooperação, Amizade e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil. Um acto solene que estava inicialmente previsto para ser assinado no Centro de Convenções de Porto Seguro, que deveria ser inaugurado pelos dois presidentes, mas cuja cerimónia foi também adiada.No Centro de Convenções e para a multidão de convidados que o Brasil recebe amanhã decorreram as cerimónias previstas, mas sem a presença de Sampaio e Fernando Henrique. A sessão terá como momentos altos a leitura da declaração da "Costa do Descobrimento" como património natural da humanidade pela Unesco e o concerto da "Sinfonia dos 500 anos" composto por Egberto Gismonti.A rematar estas comemorações, que as imposições da segurança tem drasticamente alterado e limitado, como não podia deixar de ser num país que foi desbravado pela enxada, pela arma, mas também pela cruz, o Centro de Convenções ouvirá uma mensagem de João Paulo II, transmitida em directo do Vaticano.