As Memórias não são desta gueixa
Quem leu o "best seller" "Memórias de uma gueixa", de Arthur Golden, admirou o pormenor do relato da vida e da aprendizagem das "bonecas" japonesas. Também terá pensado que Sayuri, a personagem principal, se baseava na principal fonte do autor, a gueixa Mineko, alvo de um agradecimento especial. O livro foi finalmente publicado em japonês, Mineko pôde lê-lo e não ficou nada satisfeita. Ficou mesmo muito irritada. Acusa Golden de ter percebido mal muitas coisas e, acima de tudo, de ter apresentado as gueixas como prostitutas de luxo.
A velha revista abre-se numa página de beleza intemporal. A mulher na fotografia espreita sobre o ombro com olhos escuros, sombrios. Hoje? Há um século? O rosto pintado de branco não dá uma única pista. Nem os lábios escarlates, como os de uma boneca. O vestido seria cobiçado em qualquer época; cai em espantosos rolos de brocado dourado, com um cinto de seda adornado por renda fina enrolado à volta da pequena cintura.A mulher da fotografia sorri levemente enquanto fecha a revista. Finge embaraço quando diz que era ela há 28 anos. Sabe que os anos lhe deixaram intactas a beleza e a elegância. É uma mulher orgulhosa.Mineko Iwasaki era uma gueixa famosa no mais prestigioso bairro de gueixas de Quioto, até que se retirou, em 1980. Foi ela a fonte de muita da rica textura nas descrições de "Memórias de uma Gueixa", confessa o autor do 'best-seller'."Estou em dívida para com uma pessoa acima de todas as outras... A Mineko, obrigado por tudo", escreveu Arthur Golden nos agradecimentos da versão inglesa do livro, um romance extremamente popular que, por exemplo, ficou na lista de mais vendidos do "New York Times" durante 58 semanas.O sentimento não é mútuo."Basicamente, aquilo que está escrito no livro de Arthur Golden é falso" - afirma a gueixa reformada, na primeira entrevista desde que o livro foi publicado em japonês, em Novembro, momento em que pôde lê-lo. "Ele percebeu tudo mal."Mineko desvaloriza assim um romance que milhões de leitores consideraram ser uma história bem fundamentada da vida das gueixas nos anos 30 e 40. As "Memórias..." tornaram-se uma leitura favorita dos passageiros de avião que se dirigem ao Japão, e para muitos milhões mais foi um objecto que lhes permitiu espreitar a vida secreta das exóticas "bonecas pintadas".Em inglês, o livro já vendeu quatro milhões de cópias e foi traduzido para 32 idiomas. A Columbia comprou os direitos para filmar, Steven Spielberg deve ser o realizador, e há já elementos da produção em campo, à procura, em Quioto, do cenário e das dançarinas ideais.É a história de uma rapariga do campo, vendida a uma casa de gueixas nos anos vinte, que atravessa os esquemas de ciúme e as regras mais do que rigorosas no mundo das gueixas. "É um conto de fadas muito absorvente, contado de uma maneira muito visual num tempo perdido e num mundo perdido", afirma Douglas Wicks, que vai produzir o filme. "É também sobre escravidão e sobre aqueles que têm menos hipóteses de vencer."Mas Mineko, como, segundo a tradição das gueixas, ela prefere que a tratem, protesta contra o facto de o livro mostrar as artesãs do "mundo das flores e da dança" de Quioto e do bairro de Gion como prostitutas vestidas de seda fina."Para mim, pessoalmente, trata-se de um insulto, de uma acusação... também de uma acusação contra todo o bairro de Gion", diz ela num papel onde escreveu as suas queixas irritadas e que trouxe para a entrevista.Golden, entrevistado por telefone na sua casa de Brookline, Massachusetts, garante que não está surpreendido pela ira de Mineko. "Sabia que (estas queixas) eram inevitáveis" - disse. "Se alguém escreve sobre a nossa 'família', quanto mais próximo da verdade se fica menos se há-de gostar."No folclore japonês há a história de 'tsuru-nyobo', a bela mulher-pássaro que foge a voar quando o marido, apenas humano, ignora o seu aviso e a espreita, vendo-a como pássaro. Mineko, ao ver a forma como foi escancarada a porta do seu amado mundo das gueixas, também fugiu de Arthur Golden.Mas a traição que sente é, na sua origem, algo difícil de apreender. Há tantas inexactidões no livro, lamenta. As verdadeiras gueixas não atam os atacadores dos sapatos dos homens - são as criadas que fazem isso. As verdadeiras gueixas não abandonam as suas aulas de treino. Golden percebeu mal a organização das casas de gueixas e não entendeu o sorriso pintado da dançarina tradicional de nô, acrescenta.São pormenores, responde Golden. "O tipo de coisas que percebi mal não me incomoda", afirma. E houve coisas indelicadas, prossegue Mineko: o nome do marido usado no livro numa pedra tumular, o seu próprio horóscopo mal usado na narrativa, o seu cartão de vista, delicado e florido, usado na publicidade do romance. Depois de se ter queixado por o seu nome surgir nos agradecimentos, foi apagado da edição japonesa.Ao fim de mais um tempo de conversa, com relutância, as queixas cedem finalmente o lugar ao verdadeiro problema."O livro é todo sobre sexo" - protesta. "Ele escreveu o livro tendo por tema mulheres a venderem o corpo. Não era nada assim."Há dois mitos sobre as gueixas - afirma Golden. "Um mito é o de que as gueixas são prostitutas. Esse mito é errado. O outro mito é o de que as gueixas não são prostitutas. Esse mito também é errado."A impossibilidade desta contradição é uma parte do véu de mistério sobre o mundo das gueixas. Elas fazem amor ou não?A questão ocupa as mentes masculinas há três séculos, desde que raparigas elegantes em quimonos luxuosos começaram a servir saké a convidados especiais nos "aposentos de prazer" de Edo, a antiga capital japonesa.A vocação de gueixa, e o mistério sobre a totalidade dos serviços que elas prestam, pouco mudaram desde então. De uma gueixa, espera-se que seja espirituosa, boa conversadora, capaz de entreter os homens e de os fazer sentir bem enquanto a dona da casa de chá contabiliza as contas de saké. A maior parte das gueixas passa por longos anos de treino rigoroso em dança tradicional ou a tocar o shamisen, um instrumento de três cordas. Os seus fatos elaborados são caríssimos; a maquilhagem e o arranjo do cabelo tremendamente trabalhosos. Consideram-se artesãs."As gueikos treinam-se e preparam-se mentalmente, tal como os homens de negócios se preparam para os seus negócios", afirma Mineko, usando o termo para gueixa que é característico de Kyoto. "Os homens vêm até elas pela sua beleza, pela arte, pela conversa. A nossa 'representação' envolve tudo, desde a cerimónia do chá até arranjos florais, às artes, a falar sobre o livro que se está a ler - a conversa parece nunca ter fim", observa. "Quarenta ou cinquenta minutos depois da 'festa' começar, executamos a nossa dança e depois falamos sobre várias coisas ou explicamos a dança. E em breve a festa acaba."O livro de Golden mostra estas actividades em longos diálogos e descrições pormenorizadas. Mas a trama das "Memórias..." volta-se para o comércio sexual e para os arranjos quase empresariais que envolvem uma gueixa, a sua "mãe" adoptiva, que dirige a casa de gueixas, e um cliente rico.Golden afirma que o seu romance se ficou por um meio termo na questão do sexo por dinheiro: "Não é um livro picante. Tem muito pouco sexo."Mas fazia parte do mundo das gueixas que um homem pagasse por ter uma companhia sexual? Não há dúvidas, assegura o autor. Certamente, confirma Liza Dalby, uma antropóloga norte-americana que durante um ano seguiu um curso de aprendiz de gueixa e depois escreveu um livro chamado precisamente "Gueixa". Mineko diz que a resposta não é assim tão simples."No campo em que eu estava, havia algum envolvimento sexual, mas não era essa a base do nosso trabalho" - afirma. "O envolvimento sexual era apenas uma pequena parte dos serviços. Era obviamente mais importante a nossa conversa e as danças que fazíamos. Em Gion, era habitual as geikos levarem o seu acompanhante a casa, ou a um hotel, e ajudavam-no a vestir-se para dormir. Ficavam lá até ele ir para a cama. Depois diziam boa noite e iam para casa. Evidentemente que há geikos que querem dinheiro, e se há dinheiro para ganhar a rapariga dorme com o homem. Isso acontece em qualquer campo. Mas não é a maioria dos casos."Há aqui coisas que ela acha importante especificar. Para uma gueixa tirar as suas muitas camadas de roupa para um cliente, isso depende de quem a gueixa é, e de onde está. Gion é visto como uma espécie de santuário das gueixas. As mulheres que ali trabalham consideram-se as verdadeiras guardiãs da tradição artesã e estão menos inclinadas a manchar a sua reputação indo para a cama com um cliente."Eu nunca fiz isso" - garante Mineko. "Os homens nunca me tocaram."E agora, talvez, o cerne do seu orgulho ferido: "Todos os que leram este livro pensam que se baseia nas minhas experiências. E se isso é verdade, então eu sou uma prostituta."Aos 50 anos, Mineko Iwasaki ainda pertence ao mundo das gueixas de Gion. Vive nos arredores de Quioto com o marido, Jinichiro, artista e restaurador. A sua casa arejada, com paredes de vidro, está cheia de belas peças de Jin.Mas à noite vão até Gion, um bairro de ruas estreitas onde ser reconhecido significa que se abrem portas de papel de arroz que dão para casas de chá. Algumas dessas entradas ostentam placas simples de madeira indicando quais as gueixas que aí residem - em Quioto há 253 gueixas, depois de os novos tempos e de uma economia em má forma terem reduzido a poucos milhares um contingente que, nos anos 20, era de 80 mil.Aí, Mineko sente-se em casa. Desliza para uma casa de chá e conversa com a patroa, outra gueixa reformada cujos dias de glória estão distantes. Durante um jantar que inclui ovas de polvo, pepino do mar e lula em pickles, serve saké com uma delicadeza que levou muito a aprender. Mineko deixou há muito de usar a maquilhagem e o cabelo arranjado de uma gueixa, ou os quimonos extravagantes. Mas senta-se sobre os joelhos, durante horas, de costas direitas. A sua atenção para com os convidados parece sempre no máximo; parece fascinada por casa palavra, apesar de não compreender inglês. Quando fala, as mãos voam teatralmente e depois assentam gentilmente no colo, antes de voarem outra vez. Está acostumada a receber atenções, sente-se à vontade na luz da ribalta.Golden insiste que ela não é o modelo para a personagem principal do seu livro. Sayuri - afirma - é uma personagem "completamente ficcional".O romance - acrescenta - passa-se na maior parte antes da Segunda Guerra Mundial, quando Gion era um lugar diferente do que nos anos 60 e 70, quando Mineko se tornou famosa. O enredo do livro e as circunstâncias da vida de Sayuri não se assemelham à vida de Mineko, repete. E "nunca pedi qualquer informação sobre a sua vida", insiste, ainda que se saiba que, em 1992, passou uma semana em casa dela, em Quito, armado com um gravador, enquanto ela lhe descrevia a vida das gueixas. Mineko diz que foi um favor que prestou, com relutância, para agradar a um amigo comum, e que agora está arrependida."Só há dois pontos de contacto entre a minha personagem principal e a de Mineko. Foram ambas vendidas pelos pais e a sua virgindade foi vendida", remata Golden.Mineko reconhece que o primeiro ponto é verdadeiro; quanto ao segundo, afirma que não.* PÚBLICO/"The Washington Post"