O relógio parou em Ouro Preto
No casario que sobe as ladeiras de Ouro Preto até ao cimo dos cerros onde se erguem imponentes igrejas, a memória de uma era de esplendor permanece intocável. À semelhança do Convento de Mafra, Vila Rica de Ouro Preto nasceu com a abundância do ouro. Quando as minas se exauriram, a cidade cristalizou-se no tempo e conserva ainda hoje a sua face setecentista. Um lugar único e desconcertante. Como se os bairros ricos e as igrejas barrocas de uma cidade minhota de há 250 anos fossem transplantados para um lugar exótico.
São quatro horas da tarde quente de Ouro Preto e o par de namorados que de máquina fotográfica ao ombro e rios de suor na tez sobe a ladeira em ziguezague para vencer o acidente do terreno cumpre mais uma etapa de uma viagem pela História. Xavier Palma e Roseane dos Santos vieram de São Paulo, a uns 400 quilómetros de distância, para ver em tamanho natural as ruas, as casas e as igrejas que lhes entraram no imaginário desde os livros da escola primária. Souberam ali que os postais ilustrados são ilusão sempre que o espírito dos lugares ultrapassa a capacidade de absorção das lentes fotográficas. Souberam que a beleza extrema de Ouro Preto só se sente na dureza das ladeiras, na penumbra íntima das igrejas erguidas pela cultura opulenta do ouro, no silêncio calmo das ruas bordadas por casas tão portuguesas que, se fecharmos os olhos e esquecermos o ambiente, julgamos estar num bairro velho de Braga ou de Viana do Castelo. Se Brasília é o testemunho para o mundo de um país que ambiciona ser moderno, Ouro Preto é o símbolo da memória de uma era na qual se viveram esperanças ilimitadas, como se a partir do momento em que se descobriu ouro nos sertões de Taubaté o mundo construído fosse condenado a ordenar-se num êxtase de beleza pura. Cerveja na mão, ombro encostado à parede de um bar da rua direita, James Studenhorst, um americano do Winsconsin que ali está de férias, olha em sua volta e exclama: "Na América não há nada parecido com isto." Não há mesmo. Porque, como assinalou o escritor Viana Moog, "há mais passado numa simples viela de Ouro Preto do que em toda a civilização americana".A melhor forma de se tentar captar uma ideia do que foi e do que é (são expressões sinónimas, aliás) Ouro Preto exige um pequeno exercício: primeiro há que imaginar uma cidade do Norte de Portugal do século XVIII, com as suas igrejas barrocas, ruas de calçada irregular e casas com as suas portas de madeira grossa decorada, janelas de vidros pequenos ornadas com elementos decorativos nas suas margens, beirais acentuados e mirantes no telhado; depois pegue-se no conjunto e transponha-se para uma paisagem acidentada onde um verde vegetal se impõe como tonalidade dominante. Com este exercício chega-se perto, mas nunca à essência. Porque as casas, as igrejas e as ladeiras são das criações mais belas que os portugueses alguma vez já fizeram. Em termos de genialidade estética, na extensa lista do património que os portugueses construíram nos quatro cantos do mundo só o que resta de Velha Goa é comparável a Ouro Preto.Vila Rica de Ouro Preto nasceu no princípio de 1700, quando as notícias da descoberta de ouro na zona das vizinhas Sabará e Caeté pelos bandeirantes paulistas correu célere pelo Brasil, atravessou o Atlântico e chegou a Portugal. Num ápice, centenas de milhares de pessoas abandonaram os seus lugares e deslocaram-se para a zona que viria a ser chamada Minas Gerais: senhores do engenho e escravos do Nordeste açucareiro, índios das margens do rio Uruguai, gado e alimentos da Baía, mulas de carga do Rio Grande do Sul, altos dignitários do poder real de Lisboa ou do Rio de Janeiro, aventureiros de São Paulo, caboclos do Amazonas, padres de todos os lados. Nos primeiros 60 anos desse século, só de Portugal foram para o Brasil umas 600 mil pessoas, pelos cálculos de Vitorino Magalhães Godinho, o que levou a Coroa a impor medidas restritivas à emigração, com medo que o país ficasse vazio de gente a prazo. Partindo sem calcular as condições de sobrevivência, muitos garimpeiros morreram dos ataques de malária e de fome - nas épocas mais críticas comprava-se uma galinha pelo seu peso em ouro e há estimativas segundo as quais a vida de um escravo minerador durava entre sete a 12 anos. Nos cerros longe de tudo, a lei do mais forte ditou as suas regras, a violência inscreveu-se na ordem do dia: em 1709-1710, na Guerra dos Emboabas, os paulistas quiseram expulsar da zona das minas os outros luso-brasileiros. Perderam. Em 1720, Filipe Santos ensaia a primeira tentativa de revolta contra a colonização portuguesa. Foi vencido. Ponto de encontro de todos os sonhos, porta de saída para todas as frustrações, Minas Gerais "foi o nó que atou o Brasil e fez dele uma coisa só", como escreveu o antropólogo Darcy Ribeiro.O que conservou até aos nossos dias a jóia da arquitectura tradicional portuguesa que é Ouro Preto foi o fim do ciclo do ouro, que desapareceu das minas de forma tão espontânea como apareceu. Durante o longo reinado de D. João V (1706-1750), a actividade mineradora esteve sempre em crescendo e os lucros tanto deram para financiar o Convento de Mafra, como as imponentes igrejas de Sabará, Cangonhas do Campo ou de Ouro Preto. Depois, o ouro deixou de reluzir nas minas e, com a mesma voracidade com que chegaram, os garimpeiros partiram. Ouro Preto tinha 20 mil habitantes no auge do ciclo da sua riqueza, em 1740, e apenas sete mil em 1804.Nessa altura, já não era a Vila Rica, o nome que lhe promoveu identidade nos seus primeiros anos de esplendor. Muitas das famílias enriquecidas pelo ouro ou pelas benesses de altos cargos da administração, todos aqueles que constituíam em Minas Gerais uma elite colonial que se destacava pela ostentação de gostos que levava as filhas a aprender piano, os filhos a estudar em Coimbra (em 1787, dos 19 estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra, dez eram mineiros), ou que investiam pesadas somas na construção das maravilhosas igrejas barrocas do Aleijadinho, toda essa classe elegante se desvaneceu. E as ruas ficaram vazias, as casas abandonadas, a glória de uma época dourada remetida para a memória dos livros e para a perenidade da pedra. No final do século XIX Ouro Preto perde o seu estatuto de capital do estado de Minas Gerais em favor da florescente Belo Horizonte, a 100 quilómetros de distância.Ainda hoje a cidade vive numa espécie de letargia que só uma forte colónia estudantil (são cinco mil estudantes numa cidade com 60 mil habitantes) e os ranchos ruidosos de turistas consegue sacudir. Todos os anos 300 mil forasteiros passam por Ouro Preto. "Apenas uma minoria de turistas é especializada e esses vêm cá para ver as igrejas, para espreitar os museus e analisar a arquitectura. Os outros vêm porque aqui é uma cidade histórica e isso atrai as pessoas", explica Telma Palha, museóloga da prefeitura de Ouro Preto.A verdade é que é essa massa de turistas que anima economicamente a cidade e lhe fornece argumentos para sustentar uma luta constante contra as pressões urbanísticas. Cidade eleita pela UNESCO para a sua lista de Património da Humanidade, Ouro Preto vive bem com a sua nova condição. "É isso aí, para as pessoas de cá o dinheiro dos turistas não é muito bom, porque tudo fica mais caro, mas sem ele nós não tínhamos jeito de viver", explica Pedro Mário, um taxista do centro. Claro que este manancial não dá para todos. Sentado na modesta esplanada que fica à entrada da mina da Fonte de Bem Querer, uma atracção turística na periferia da cidade, José Silva mostra as rugas das mãos e diz : "Isso do turismo é para gente rica, que eu para viver tenho de ir trabalhar na construção toda a semana; e, como aqui não há trabalho, vou para Belo Horizonte."Num olhar de relance, e apesar das diferentes condições de vida entre os que moram no centro e os que se acotovelam nos bairros dos cerros mais afastados, Ouro Preto é uma cidade que aparenta viver em paz. Se ali houver algum mal, é a rotina. "Não consigo viver aqui permanentemente, fazem-me falta ruas com movimento, carros e confusão. Por isso todo o fim-de-semana eu vou para Belo Horizonte", diz Telma Palha. Se se gostar da vida pacífica da cidade, o pior mal que lá se há-de encontrar é o desnível entre as suas ruas, que obrigam a um enorme esforço para se caminhar. Mas como ali a pressa não faz sentido, há sempre um muro, uma escada ou um café onde se pode sentar o corpo e libertar o olhar pelas imensas belezas da cidade. E, aí sim, os sentidos deliciam-se e a imaginação pode galopar, porque, se há um modelo de cidade perfeita, Ouro Preto não lhe deve ficar muito distante.