Manuel Bullosa
Manuel Bullosa era talvez a pessoa que, em Portugal, mais conhecia do negócio de petróleos em larga escala. A partir do nada, veio para Lisboa da sua Galiza natal e começou desde moço a vender petróleo pelas ruas, empregado numa das carvoarias da época. Passo a passo, foi subindo e fez uma imensa fortuna. Em certa altura dizia-se ser mesmo a maior fortuna de Portugal.Mas a par da ascensão nos negócios, que foi efectivamente prodigiosa, cultivou-se e adquiriu um "status" social ao nível da sua promoção financeira. Era, aliás, naturalmente, um "gentleman", um grande senhor: nas maneiras, no comportamento, nas relações sociais que soube criar, no cuidado, um tanto "snob" no vestir...Durante o salazarismo só conheci de nome - e a grande distância - Manuel Bullosa. Pertencia, no plano das grandes famílias ricas do tempo, à elite financeira do regime: os Mellos, os Espírito Santo, o Champalimaud, o Queiroz Pereira, o Cupertino de Miranda, o Delfim Ferreira, entre alguns outros, poucos. Pertencia, portanto, a um universo que se situava nos antípodas do meu...Quando fui exilado para França e logo nos primeiros meses, quando ainda andava à procura de trabalho, para ganhar a vida, um dia, almoçando com o editor António Ramos, meu velho amigo, salvo erro na Brasserie Balzar (o Ramos trabalhava na Livraria Bertrand com Bullosa, seu proprietário, à época), ofereceu-se para me apresentar ao senhor Manuel Bullosa, que - segundo ele - precisava de alguém com conhecimentos jurídicos para o Banco Franco-Portugaise, de que era o principal accionista. Foi assim que o conheci pessoalmente. E foi, devo reconhecê-lo, desde o início das nossas relações sempre amabilíssimo comigo.Assim, enquanto estive no exílio, tive sempre uma avença no Banco Franco-Portugaise, modesta - diga-se de passagem - mas que para mim foi de grande importância e me deu alguma tranquilidade, naqueles tempos tão duros e incertos. O banco trabalhava sobretudo com os emigrantes portugueses, em França e tinha algum movimento no seu contencioso. Ia lá todas as semanas e, além disso, sempre que me chamavam. Contudo, para além da conversa inicial, só raramente o voltei a encontrar pessoalmente: as vezes em que isso terá acontecido contam-se pelos dedos de uma mão...Depois do 25 de Abril recebi-o como ministro dos Negócios Estrangeiros e tivemos alguns contactos, mais consistentes, tanto em Portugal como no Brasil, no decurso do processo democrático que se abria então. Sempre cordialíssimos. Bullosa, nessa altura, manifestava-se sereno mas inquieto quanto ao futuro, tanto de Moçambique, onde tinha grandes interesses, como de Portugal.Foi então - só então - que me contou uma história que sempre me pareceu exemplar e que o define como um homem de princípios e de carácter.Na altura em que me ofereceu a avença no banco, isso foi, naturalmente, conhecido em Portugal, sobretudo pela PIDE. Marcelo Caetano, que tinha boas relações com Bullosa, não gostou e pediu ao então ministro Moreira Baptista para falar a Manuel Bullosa no sentido de ele me retirar a avença, dado eu ser considerado "persona non grata". Apesar da pressão insistente, Bullosa não cedeu. Disse que me tinha contratado como bom profissional e como português - nesse tempo não havia muitos advogados portugueses disponíveis em Paris - e que não tinha nada a ver com as minhas opções políticas. E acrescentou: "O que lhes posso prometer, Moreira Baptista - e peço que comunique isso ao senhor presidente do Conselho -, é que se alguma vez, com a política nunca se sabe, lhes acontecer o mesmo a vós, também vos garantirei emprego em Paris. Se assim quiserem..."O mais curioso de tudo é que isso veio a acontecer com Moreira Baptista! Encontrei-o também duas ou três vezes no Brasil, no período em que decidiu ficar por lá, incerto quanto ao rumo que as coisas tomariam aqui. Sei que ajudou financeiramente o almirante Tomaz - e bem assim o almirante Tenreiro - a viver nesse período. Sempre o tentei convencer a regressar, dado que nada o impedia disso - tanto em Portugal como em Moçambique pós-independência.Um dia, convidou-me a dar um passeio no seu iate na baía de Guanabara. Lembro-me que estava uma manhã radiosa. Além do cônsul, foram nesse breve cruzeiro o então ministro Coimbra Martins, a actual deputada Teresa Patrício Gouveia e outras pessoas, que agora não recordo. Quando o barco se aproximou da barra da baía, perguntei ao arrais por que não saía para o alto mar. Respondeu-me com uma hesitação: "Sabe, o tempo..." "Mas está uma manhã radiosa...", atalhei convicto. O senhor Bullosa, imperturbável, sempre, deu ordem para sairmos. Assim se fez. Tomámos banho ao largo, delicioso. Comemos um lauto almoço. Mas quando regressávamos o tempo toldou-se. De repente, virou uma verdadeira tempestade com chuva diluviana e vento ciclópico. Partiu-se o mastro grande, gerou-se um certo pânico. Mas Bullosa sempre imperturbável não teve uma palavra. A custo lá conseguimos entrar na barra. O competente arrais só me disse à despedida: "Eu tinha prevenido...". Bullosa, nem uma palavra, quando lhe agradeci o magnífico passeio. Note-se que o caso não foi simples. O meu amigo Brizzola, então governador do Rio, chegou a pôr um helicóptero salva-vidas de prevenção...A morte de Manuel Bullosa não pode surpreender dada a sua avançada idade. Mas nem por isso deixa de ser muito triste. Com ele, desaparece uma figura marcante do universo galaico-português. Ao que me dizem, manteve-se lucidíssimo e igual a si próprio até ao fim. A última vez que o vi foi há talvez dois anos, já depois de eu ter deixado de ser Presidente. Acompanhava a minha vida ao pormenor - fez-me perguntas sobre os meus projectos - e mostrou sempre uma grande simpatia por mim. Pertencia, de resto, ao conselho geral da Fundação que dirijo. Lembro-me de ter ido com ele à Galiza a convite do nosso comum amigo D. Manuel Fraga Iribarne e termos jantado em sua casa. Foi um jantar inesquecível pela fidalguia com que fomos recebidos - D. Manuel Fraga e eu - e pelas histórias que então se contaram, no cruzamento das duas culturas galega e portuguesa.É com sincero pesar e comoção que invoco hoje a figura de Manuel Bullosa. Apresento à sua esposa e filha, que tão gentilmente nos receberam também, as minhas sentidas condolências.