O'Neill no país da vidinha
A peça de Teatro "Tomai lá do O'Neill!" segue a linha do olhar do poeta sobre o ser português, num registo dramático. Não pretende ser uma biografia mas foi construída a partir de factos da sua vida e da sua obra. De fora, fica a faceta humorística e as relações amorosas do homem que tropeçou de ternura por uma francesa, Nora Mitrani, a única das mulheres da sua vida representada no palco da Comuna, em Lisboa.
Não é uma biografia, nem uma interpretação de poemas de Alexandre O'Neill (1924-86), mas tem bocados da sua poesia, por vezes poemas inteiros (como "Um Adeus Português", "Portugal" e "País Relativo"), apontamentos biográficos, pessoas que se cruzaram na sua vida, na sua poesia. O texto da peça de teatro "Tomai lá do O'Neill" (o nome de uma antologia póstuma, publicada em 1986), que está em reposição no Teatro da Comuna em Lisboa, até domingo, foi construído por Filomena Oliveira a partir da obra, entrevistas e relatos de amigos de O'Neill - como António Alçada Baptista, Fernando Lopes, Teresa Patrício Gouveia, com quem foi casado e de quem teve um filho - seguindo a linha do olhar do poeta sobre o ser português. "Ele era um portuga, como dizia o Fernando Lopes, e há uma ligação muito evidente de amor e raiva ao 'país da vidinha'. Uma das questões que colocámos foi se era possível existir a obra dele se ele não tivesse essa relação contraditória com o país", diz o encenador João de Melo Alvim, da Companhia de Teatro de Sintra, que apresentou pela primeira vez esta peça em Maio de 99.O'Neill tem, para o encenador, um modo nostálgico de olhar para os portugueses, um modo que transporta uma certa dor e um certo amor. Daí que todo o espectáculo seja pontuado por silêncios, lentidões : "Queria quase uma linha horizontal em que a palavra estivesse presente." Portugal, como escreveu O'Neill num poema com o mesmo nome, "se fosses só três sílabas / de plástico, que era mais barato! (...) Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo (...) meu remorso, / meu remorso de todos nós..." A vidinha portuguesa são as repartições públicas, metáfora desse país (de malucos e lunáticos): as filas de espera, o homem curvado, a "cunha", o sítio onde não se trabalha, destrabalha-se, mas também onde "um funcionário público tem que funcionar a horas". É assim que começa o espectáculo e é na repartição, no café, em casa do poeta que os seis personagens se movem. Das muitas mulheres que o poeta amou, Nora Mitrani, interpretada por Sofia Borges (que faz também de funcionária pública), é a única presente na peça (faltariam, entre as referidas nas suas biografias, Noémia Delgado, com quem casou em 1957 e de quem também teve um filho, a inglesa Pamela Einichen Pinheiro, Laurinda Bom, além de Teresa Patrício Gouveia). Porque, explica João de Melo Alvim, segundo disse Alçada Baptista foi ela o grande amor de O'Neil a quem dedicou "Seis Poemas Confiados à Memória de Nora Mitrani" (1962) e para quem escreveu: "e como um adolescente / tropeço de ternura por ti". Conheceram-se quando o poeta traduziu o texto de uma conferência que Nora Mitrani, francesa que pertencia ao grupo surrealista, veio fazer a Portugal em 1949 (no espectáculo é anunciada na rádio). Nora parte para França, convida-o a ir ter com ela: "Vens, ficas cá e depois se vê." A PIDE, depois de lhe fazer um interrogatório que terá durado 15 horas, não o deixa partir. Seixas (João Mais), o agente, diz-lhe: "Se calhar quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola." Resposta de O'Neill: "Engana-se, porque Nora Mitrani não é uma gaja e eu não tenho cachola." Asseguram que, se o poeta quisesse realmente, teria conseguido ir a Paris "fazer turismo". Em palco, o poeta (Rogério Jacques) bate nas letras da máquina numa mesa com mais de seis cinzeiros (dizem que uma das suas obsessões era despejar cinzeiros) e a mulher diz com ele o lindíssimo "Um Adeus Português". Ela, que, passados uns anos, quando o poeta foi a Paris procurá-la, se tinha suicidado. Os dois actores lêem o poema que 0'Neill escreveu a Nora e a Portugal: "Nos teus olhos altamente perigosos / vigora ainda o mais rigoroso amor / a luz de ombros puros e a sombra / de uma angústia já purificada // (...) Não podias ficar nesta cadeira / onde passo o dia burocrático / o dia-a-dia da miséria que sobe aos olhos vem às mãos / aos sorrisos / ao amor mal soletrado / à estupidez ao desespero sem boca / ao medo perfilado/ à alegria sonâmbula à vírgula maníaca / do modo funcionário de viver". "Fumemos e refumemos", "absinto-me cansado", o ciclista que "pedalma". Palavras inventadas (uma das características da sua obra) e frases de poemas são ditas como quem pede um copo de água. "Não me choca nada porque os poemas dele nasciam espontaneamente. Aqueles que o consideram o grande poeta deste século é porque a sua poesia nasce do pulsar diário, os temas são do dia-a-dia e ele aplica-os. É essa a grande força da sua poesia." 0'Neill chega de bicicleta e tira várias vezes um caderninho do bolso para escrever ou ler, por vezes rascunha num guardanapo. Quase sempre de cigarro na boca (Português Suave sem filtro), com uns grandes óculos, diz também a célebre frase que inventou para uma campanha de publicidade, uma das únicas marcas da profissão presente na peça: "Há mar e mar, há ir e voltar". Falta, entre outras, a "Bosch é bom", que, diz-se, começou por ser "Broche é bom" ou, uma que não chegou a passar, "Nos colchões Lusoespuma você dá duas que parecem uma." Não é uma biografia mas há factos reais misturados com histórias ficcionadas construídas a partir da poesia de O'Neill, num registo dramático, que deixa de lado a faceta humorística do homem-poeta-publicitário. E as mulheres que amou. E...Porque o lado amoroso de 0'Neill "dava outra peça", o encenador optou por fazer um jogo de tempos com a presença de Nora. "A relação dele com as mulheres era um pouco como com o país. O Fernando Lopes costumava dizer que quando se ligava verdadeiramente a uma mulher preferia ir para a pastelaria."Se na cena do "Adeus Português" está em sua casa sozinho - "Quis isolá-lo, dar uma certa intimidade, confrontá-lo com ele próprio e o poema sai desse isolamento", explica o encenador - nas outras, O'Neill aparece no café (era um bom "gourmet" e, conta o encenador, gostava de cirandar pelas tascas e restaurantes). Os poemas vão nascendo dos diálogos, com o empregado (Pedro Estorninho), com o funcionário público Silvino (Nuno Correia Pinto), um personagem imaginado pela dramaturga e um símbolo das relações que tinha. Porque se era um "homem associal, ácido, sarcástico, era também extremamente social com as pessoas de quem gostava." Numa entrevista que deu dois anos antes da sua morte chegou a dizer que tinha apenas um, dois amigos. No café, como diz Rogério Jacques, à medida que o tempo passa 0'Neill fica mais amargo, mais sarcástico, mais irónico. De qualquer modo, conta, "a ideia não era fazer um clone mas que a personagem tivesse o espírito dele sem o imitar. É engraçado que a minha postura, por empatia, acabou por ser igual - a perna cruzada, os ombros caídos."