"A guerra não é legítima"

Os bispos falaram no "Ano da Reconciliação" angolana. E disseram: esta guerra "não é legítima". Falaram de "genocídio". E acusaram: "A História não poupará os seus verdadeiros autores". Para a ONU, foi o convite de alterar "a sua política" angolana. No tribunal, continuou o julgamento de Rafael Marques. Os homens do Presidente acusam-no de "desestabilizar o Exército".

Os bispos angolanos consideram que a actual guerra civil "não tem legitimidade" e lançaram um apelo à reconciliação nacional, ao mesmo tempo que pedem que as Nações Unidas "repensem a sua política no caso angolano e procurem desempenhar um papel mais eficiente na procura da paz". Estas declarações, que contrariam directamente o discurso do regime angolano, fazem parte de um documento divulgado no final da primeira assembleia anual da Conferência Episcopal de Angola e S. Tomé (CEAST)."Fechar as portas ao diálogo seria abri-las a uma guerra sem fim à vista e governo algum pode aceitar uma tragédia destas para o seu povo", consideram os bispos angolanos. O documento final da CEAST, intitulado "O Ano da Reconciliação" e que foi lido pelo presidente da Conferência e arcebispo do Lubango, D. Zacarias Camuenho, considera que "as atrocidades na guerra em Angola são crimes contra a humanidade e, como tal, não podem considerar-se assunto interno de uma nação."Além de convidar de forma inequívoca a ONU a rever a sua política para Angola - que nesta terceira guerra civil tem sido de alinhamento notório com o Governo de Luanda -, a Igreja Católica angolana desafia o Alto Comissariado para os Direitos Humanos a "instalar uma delegação em cada província e, se possível, em cada município, onde as pessoas possam recorrer livremente para solicitar esclarecimentos sobre a defesa dos seus direitos". Os bispos apelam também ao Governo para que decrete uma amnistia nacional para os presos, "de um modo especial nos casos em que não seja lesada a justiça com terceiros"."Chegaremos à paz unicamente pelo caminho da reconciliação e chegaremos à reconciliação unicamente pelo caminho da libertação do egocentrismo exclusivista que nos isola dos outros e nos amesquinha perante o mundo", referiu o arcebispo do Lubango (antiga Sá da Bandeira, capital da Huíla). Numa linguagem que há poucos meses seria impensável - mas que surge no seguimento de posições firmes da Igreja angolana contra a situação do país -, os bispos vão ao ponto de considerar que a guerra "não tem legitimidade", frisando a urgência de procurar "todas as alternativas à guerra". Os bispos citam o Papa João XXIII: "Não vamos discutir quem tem razão, vamos unir-nos.""Há 25 anos que o sangue de irmãos vem sendo derramado por irmãos, é um dos mais longos genocídios da África contemporânea e a História não poupará os seus verdadeiros autores, que vão deixar na sombra muitos criminosos do passado", acrescentou D. Zacarias Camuenho em Luanda. "Se o povo não foi ouvido para a guerra começar, que seja ouvido para ela acabar".Para os bispos angolanos, "o único benefício da guerra é fazer compreender a necessidade da paz". "Matar um inimigo é muitas vezes fazer nascer dezenas de inimigos".O tom e o conteúdo do documento dos bispos angolanos tocam num ponto delicado para o Governo do Presidente José Eduardo dos Santos, ao questionar não apenas a inevitabilidade mas a própria legitimidade da guerra. Luanda é especialmente avessa a qualquer tese pacifista, como ficou demonstrado com a recente repressão de manifestações pela paz promovidas pela oposição ou, anteontem mesmo, na última sessão do julgamento mais incómodo para o regime, do jornalista Rafael Marques, cuja sentença será amanhã conhecida.Numa sessão à porta fechada que durou quase 12 horas sem interrupção, Rafael Marques foi acusado de "desmoralizar o Exército" em plena ofensiva contra a UNITA com o artigo "O Baton da Ditadura", publicado no jornal "Agora" a 3 de Julho, e com o seu envolvimento no Manifesto para a Paz. As duas testemunhas da acusação, o chefe da Casa Civil de José Eduardo dos Santos, José Leitão, e o porta-voz do Presidente, Aldemiro Vaz da Conceição, afirmaram perante o tribunal que as actividades de Rafael Marques estão a lesar o esforço de guerra das Forças Armadas Angolanas (FAA) e que fazem parte de uma campanha internacional para derrubar o regime - acusações que servirão talvez para fundamentar uma condenação do jornalista por traição.Rafael Marques é acusado de difamar o Presidente da República no artigo do "Agora" - onde chama "ditador" a José Eduardo dos Santos, que responsabiliza pela "promoção da corrupção e da incompetência" - e pela lei angolana não pode apresentar prova dos factos. Por isso, quando anteontem a única testemunha da defesa, o activista dos direitos humanos Fernando Macedo, declarou que as acusações contra o jornalista são inconstitucionais, o juiz Joaquim Cangato mandou-o sair do tribunal e "discutir esses assuntos noutro lugar".Perante o juiz - um coronel da Segurança de Estado sem formação de magistrado -, José Leitão e Aldemiro Vaz da Conceição alegaram que Rafael Marques violou os limites da liberdade de expressão, difamou o Presidente e humilhou-o, a ele e ao regime. Descreveram também o jornalista como alguém intolerante e obsecado com a queda de José Eduardo dos Santos. Nas duas últimas sessões, Rafael Marques contou apenas com um defensor oficioso nomeado pelo tribunal, uma vez que o advogado Luís do Nascimento foi expulso e suspenso da actividade profissional por seis meses - uma sanção que é da competência exclusiva da Ordem dos Advogados angolana.O advogado de José Eduardo dos Santos, Rui Ferreira, recomendou a Rafael Marques "que crie um partido político" para lutar pela sua causa. Para o juiz, Rui Ferreira deixou outra recomendação: juntar "desestabilização do Exército" às acusações que pendem sobre o jornalista. E alguns pedidos: pena máxima, sem misericórdia e prisão efectiva para Rafael Marques, um jornalista "perigoso".Angola assinalou, entretanto, os 41 anos do denominado "Processo dos 50", cujos sobreviventes visitaram ontem a Casa de Reclusão Militar de Luanda, onde meia centena de nacionalistas angolanos estiveram presos por crimes contra a segurança do Estado português. "No decurso do processo, afirmámos o nosso nacionalismo e denunciámos o carácter odioso da opressão portuguesa e este inolvidável acto levado a cabo por um punhado de patriotas rompeu o isolamento a que o governo colonial fascista português submeteu o povo angolano", afirmou à Lusa um dos ex-presos políticos, Beto Van-Dúnem.Entre as pessoas que, segundo este nacionalista angolano, "merecem a estima, consideração e reconhecimento de todo o povo", Beto Van-Dúnem conta Agostinho Mendes de Carvalho, precisamente o deputado que, em Dezembro, ameaçou Rafael Marques no Parlamento de "não chegar aos 40" anos. O jornalista está a ser julgado por uma lei que é herdeira da que serviu ao regime colonial para julgar os "50" em 1959. E a carta de Rafael Marques a pedir esclarecimentos ao presidente do Parlamento sobre as ameaças do deputado foi acrescentada às provas de acusação.

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