Razões para estar vivo
Ian Dury morreu ontem aos 57 anos de um cancro que anunciou ao mundo no seu aniversário, há dois anos. Inteligência, coragem e um humor sórdido fizeram dele uma estrela inverosímil da geração que cresceu com o punk.
Em Maio de 1998, no dia em que completou 56 anos de idade, Ian Dury decidiu informar a comunicação social inglesa de que lhe tinham diagnosticado um cancro do cólon em 1995, mas que entretanto a doença contagiara também o fígado. Escolheu essa data, disse na altura, na esperança de encorajar outros a combaterem a doença. Era esse o tipo de homem que ele era e assim continuou até ontem fechar os olhos. No ano passado, apesar do avanço da doença, ressuscitou a sua carreira musical, lançando "Mr. Love Pants", o seu primeiro álbum com os Blockheads em duas décadas. Depois disso fez campanha para a vacinação contra a poliomielite, de que sofria desde criança, e anúncios para o jornal "The Times", na televisão britânica. Comentou aos microfones da BBC: "Não passo muito tempo a queixar-me. Tenho a certeza que não se fica melhor e 50 por cento de cada batalha passa-se na nossa cabeça".Apesar de parcialmente paralisado desde a infância, Dury graduou-se no Royal College Of Art, vindo a ensinar pintura no Canterbury Art College. E foi só quando já tinha 28 anos de idade que formou a sua primeira banda em 1970, os Kilburn & The High Roads. Injustamente esquecido pelo passar dos anos, no entanto, os Kilburn foram uma das bandas cruciais do surto pub rock. De par com os Dr. Feelgood surgiram como foco de reacção ao rock progressivo em nome do purismo rock'n'roll, uma atitude que preparou terreno para o surto punk.Complicações com as editoras fizeram com que o grupo não lançasse o seu disco de estreia na época em que eram mais populares, acabando por se dissolver. Dury e o pianista/guitarrista Chaz Jankel continuaram, porém, a trabalhar em conjunto e daí resultou o primeiro álbum daquele, "New Boots And Panties", lançado em 1977 pela Stiff Record (a mesma editora onde se estreou Elvis Costello). Fazendo das letras sketches satíricos da sociedade inglesa em refinados jogos de palavras, misturando-lhes uma boa dose de calão, fazendo uso e abuso de um cockney espesso, e empregando a voz mais como um actor de vaudeville que como um cantor, Dury estava no auge da sua arte. Mas as subtilezas desta passaram despercebidas à maioria, que comprou o álbum por causa de refrões hilariantes como o de "What a waste" e dos cocktails musicais instâneos preparados por Jankel, misturando rock 'n' roll, punk e disco sound. O sucesso que manteve o álbum de estreia durante dois anos contínuos no top inglês motivou o recrutamento dos Blockhead, que passaram a acompanhar Dury em espectáculos cada vez mais semelhantes a uma parada de horrores. O single posterior ao álbum foi "Hit me with your rhythm stick", que chegou a número um em Inglaterra e inundou as rádios europeias, pelo menos até haver quem se desse conta do contéudo bastante lascivo da letra. E foi ainda sem que a maior parte entendesse onde Dury queria chegar, simplesmente devido à acentuação da tecla disco sound, que os álbuns seguintes "Do It Yourself" e "Laughter" voltaram a ter vendas respeitáveis.Mas o quarto álbum "Lord Upminster", gravado nas Bahamas com a famosa secção rítmica jamaicana Sly & Robbie em 1984, foi um fracasso, acentuado pela recusa do single "Spasticus autisticus"(mais uma delirante peça de humor negro) ser aceite como a canção do ano pelas Nações Unidas dos Deficientes. Perante o desaire, Dury enveredou por uma carreira no cinema que lhe valeu alguns papéis principais em filmes secundários e alguns papéis secundários em filme como "Piratas" de Polanski e "O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante Dela" de Greenaway. Um artista de muitos talentos, Ian também escreveu música para jingles e compôs um musical chamado "Apples".