A última viagem
Para Miguel Rovisco, a última peça que escreveu e que hoje o TEC estreia, aconteceu como "uma maré de jovialidade saída da Bíblia". Chama-se "A História de Tobias". Um texto dramático irreverente e subtil, premonitório da morte da autor. Um espectáculo que é também, no Dia Mundial de Teatro, uma homenagem a Zita Duarte.
Miguel Rovisco morreu cedo, aos 27 anos. Em 1985, dois anos antes de se ter suicidado, escreveu uma peça de teatro a que deu o título "A História de Tobias". Estreia-se hoje, às 21h30, no Teatro Experimental de Cascais (TEC) numa encenação de Carlos Avilez.Em 1987, "A História de Tobias" obteve, a título póstumo (Rovisco morreu em Dezembro desse ano), o Prémio Jovem de Teatro da Secretaria de Estado da Cultura. Trata-se de um tema inspirado no "Livro de Tobias", da Bíblia, a que o próprio Rovisco se referia, quando escreveu esta peça, como tendo "encontrado a felicidade". É uma peça onde os homens morrem cedo e as mulheres sobrevivem "porque com elas nasceu a racionalidade". Tobias, filho do cego Tobite da tribo Naftali, um homem caridoso que no cativeiro de Ninive vai enterrando os mortos contra a determinação do rei, faz uma viagem acompanhado de Rafael (o Arcanjo S. Rafael) na qual vence monstros, encontra a esposa e descobre a felicidade e a cura da cegueira de seu pai. Este episódio bíblico vem descrito no "Livro de Tobias", um dos livros deuterocanónicos, ou seja, livros sagrados que estão reunidos no fim do Antigo Testamento."Era difícil, a seguir aos 'Negros', de Genet, escolher uma peça. Não só porque fazemos 35 anos de vida, mas também porque ainda está muito recente nas nossas mentes a memória de Zita Duarte. Estamos a viver um momento muito singular em que é preciso repensar tudo. Há uma alma agitada dentro do grupo, uma alma renovada, um desejo grande de criatividade que não sabemos para onde vai. Qualquer coisa se passa que estamos a tentar perceber e esta peça do Miguel Rovisco está a ajudar-nos nessa descoberta", disse Carlos Avilez ao PÚBLICO.Na sua pequena autobiografia, Miguel Rovisco escreve que "nasceu num dia de muita chuva" e que na infância "aprendeu a recitar La Fontaine com a mais correcta das pronúncias". Mais tarde, constatou que Portugal "não possuía um verdadeiro teatro nacional" e resolveu "emendar este estado de coisas lamentável com a leitura dos eternos clássicos traduzidos para português". Ficou com a convicção de que escreveria melhor. Até que os leu na língua de origem e ficou a admirá-los "inexcedivelmente, notando com orgulho a sua influência pelas entrelinhas do que escrevia, para azar dos tradutores portugueses."Quem conheceu Miguel Rovisco fala dele como de um jovem sincero, franzino, mordaz, uma pessoa estranha e instável, de uma simpatia extrema. Mas um jovem que não encontrou em vida as respostas que desejava para os seus sonhos.Um dia dos anos 80, no Acarte, representava-se "Hamlet", numa encenação de Avilez. No final, um jovem desconhecido, deixou um poema para o elenco. Avilez ofereceu-o a Carlos Daniel que fazia o papel de Hamlet. Esse poeta era Miguel Rovisco. Mais tarde, em 1991, Avilez estreou no TEC a peça de Rovisco "A Lua Desconhecida". Quase uma década depois, Rovisco regressa ao TEC com "A História de Tobias.""Rovisco ainda não foi encontrado. A sua obra precisa de ser descoberta porque é um vulcão. E esta peça em particular é muito especial visto que se trata de um encontro do autor consigo próprio. É um texto de despedida que anuncia um autor em processo de suicídio", nota Avilez."Este é um espectáculo insólito, nem parece um espectáculo meu", acrescenta. Um espectáculo estranho, de facto. Mas a marca do TEC está lá na magia e na festa, nos rituais que dão ao teatro esse lado antigo e subterrâneo do palco, um eco que vem irremediavelmente de um sítio qualquer da pátria grega.Miguel Rovisco, nesta peça, mostra uma escrita ágil, teatralmente eficaz, um texto dramático saboroso que funciona, do ponto de vista da encenação, como um belo cerimonial. Rovisco coloca nesta obra todas as suas inquietações: a morte prematura, a procura do amor, a beleza do corpo, o anjo dissimulado, a caridade, a maldade dos homens, a pobreza.O espectáculo "A História de Tobias" é dedicado à memória da recentemente desaparecida actriz Zita Duarte e a sua estreia assinala o Dia Mundial do Teatro (ver páginas Hoje dos cadernos Locais de Lisboa e Porto). O espectáculo de amanhã, às 21h30, reverte a favor das vítimas das cheias de Moçambique.No próximo mês de Julho, o TEC estreará "Terra Firme", de Miguel Torga, e no dia 13 de Novembro, dia do aniversário da companhia, está agendada a estreia de "Casamento", de Gombrowicz, que será complementada com a inauguração de uma grande exposição, no espaço TEC, sobre a vida do grupo, organizada pelo actor João Vasco.