Charola de Tomar reabre
A charola do Convento de Cristo de Tomar foi ontem reaberta ao público depois de doze anos de restauro. Um dos mais simbólicos espaços nacionais deixa assim de estar tapado pelos andaimes, revelando uma importante arquitectura virtual pintada na abóbada em pleno século XVI. Mas só daqui a três ou quatro anos todo o trabalho estará terminado.
Quem a partir de hoje se deslocar ao Convento de Cristo em Tomar, classificado como Património Mundial pela UNESCO em 1983, já pode finalmente visitar a charola e não ver andaimes mas a abóbada restaurada. E talvez até se surpreenda quando ao olhar para cima reparar que em vez de uma abóbada de cal branca onde estavam desenhados brasões envoltos por uma moldura, datados do final do século XVIII princípios de XIX, há não uma mera pintura decorativa, mas uma "arquitectura fingida, um conjunto de pintura mural manuelino com arquitecturas virtuais, perspectivada", segundo classifica o historiador de arte Vítor Serrão, consultado pelo PÚBLICO. A charola foi reaberta ontem ao público, numa cerimónia onde esteve presente o ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, e o Presidente do Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar), Luís Calado, que prometeram uma recuperação integral da charola para daqui a três ou quatro anos. Carrilho anunciou também que a resolução do problema do antigo Hospital Militar, que o Ministério da Cultura pretende comprar ao da Defesa, será solucionado dentre em breve.As obras de restauro na abóbada da charola do Convento de Cristo iniciaram-se em 1988 (pelo Instituto José de Figueiredo) parando pouco depois após a descoberta da pintura manuelina. "Foi uma grande descoberta para a história de arte. É o primeiro testemunho que temos em Portugal de pintura de perspectiva arquitectónica. Não é uma mera pintura decorativa, é uma arquitectura fingida", diz Vítor Serrão. "É como se o arquitecto, por não poder intervir numa obra que já estava feita, recriasse o ambiente que gostaria de ver ali criando uma atmosfera de arcos rendilhados, troncos de árvore, um labirinto de formas tipicamente manuelinas." De facto, como explica o historiador de arte, a importância deste monumento deve-se ao facto de ser "um microcosmos de todo o mundo português" através dos vários estilos que percorrem a arte nacional: "Desde o românico primitivo, ao gótico, manuelino, renascimento e maneirismo." Também para Joaquim Caetano, outro historiador consultado pelo PÚBLICO, a charola é "claramente um dos sítios simbólicos da monarquia onde os reis modernos sentem a necessidade de deixar a sua marca".Mandada construir em 1160 por Gualdim Pais, mestre da Ordem dos Templos em Portugal, juntamente com o Castelo de Tomar, a charola fica concluída no final do século XII e é, segundo Serrão, o melhor testemunho da arte templária. "A arquitectura dos Templários é bastante simbólica, normalmente centralizada, estabelecendo um mimetismo com a Capela do Santo Sepulcro em Jerusalém", explica Joaquim Caetano. Em 1312 D. Dinis extingue a ordem dos Templários substituindo-a seis anos depois pela nova Ordem dos Cavaleiros de Cristo. Mais tarde D. Henrique manda construir o Claustro da Lavagem e do Claustro do Cemitério. Na charola, as marcas renascentistas deixadas por D. João III são um conjunto de pinturas de Gregório Lopes (apenas dois dos quadros ali se encontram, os restantes estão no Museu de Arte Antiga) e um conjunto de pinturas murais que ainda não foi restaurado. Também no reinado dos Felipes ali foram feitas intervenções, com a pintura mural inferior maneirista da autoria de Domingos Vieira. Embora a documentação cite Fernão de Anes como autor das pinturas na abóbada, para Vitor Serrão foi Diogo Arruda a quem coube a concepção do desenho, ligeiramente posterior a 1510.Para Joaquim Caetano a introdução do conjunto de obras manuelinas na charola é muito importante, quer do ponto de vista artístico quer do ponto de vista simbólico: "É um programa unitário que reúne à iconografia religiosa uma iconografia heráldica profana de D. Manuel, da Ordem de Cristo e de Portugal." É este o ponto que o historiador considera ser mais curioso, uma vez que não era comum na história de Portugal a iconografia dual: "Esta representação iconográfica da monarquia tinha claros paralelos com a situação aqui do lado, onde fazia todo todo o sentido porque tinha havido a junção de dois reinos, o de Aragão e de Castela. De certo modo isto está ligado aos próprios interesses de D. Manuel, que tinha sido jurado herdeiro do trono de Castela antes dos reis católicos terem filhos."A importância simbólica da charola para o rei deve-se também à ligação que tinha com a Ordem de Cristo que, para além de ser a única ordem nacional, está fortemente ligada à política dos descobrimentos - promove as grandes navegações e a expansão ultramarina, especialmente a partir do mestrado de D. Henrique. É igualmente relevante para o estatuto de D. Manuel: "Não é descendente em linha directa do rei anterior, D. João II, e além de ter dinheiro para o fazer tem uma necessidade muito grande de afirmação, que se vai projectar numa política representativa de grande intensidade a que damos o nome de manuelino." Será em Tomar que D. Manuel inicia as grandes obras de renovação arquitectónica numa intervenção estrutural na charola, redifinindo, nas palavras de Joaquim Caetano, o seu papel: encomenda ao arquitecto Diogo Arruda a igreja que é adossada ao templo primitivo, transformando-a em capela-mor. Ao mesmo tempo, há uma renovação nas talhas, na pintura do tecto feita pelo pintor de Tomar Fernão de Anes, no gesso da parede e nas pinturas sobre madeira da autoria do pintor régio Jorge Afonso e ainda no conjunto de pintura e estatuária da autoria do flamengo Olivier de Gand. "Sabia-se que havia alguns programas do género mas Tomar vai-nos dar uma amostragem do que era um revestimento total de intervenção artística manuelina funcionando com as várias artes num espaço. Ainda há não muito tempo tinha-se a ideia de que a pintura mural era um fenómeno mais do norte do país", continua Joaquim Caetano.A camada de cal que foi sobreposta a este conjunto de pinturas está, segundo Serrão, ligado ao facto de a partir de 1530/40 a estética renascentista desvalorizar o gótico e o manuelino: "Tal como a igreja manuelina foi tapada pelo novo claustro do Torralva, até a emblemática janela manuelina desenhada por Arruda estava tapada, também na charola o gosto harmónico, equilibrado, perspectivado da campanha joanina do renascimento vai negar a qualidade estética da pintura naturalista do manuelino."