A loucura do rei Maradona
Maradona foi um deus. Desde que aos 15 anos iniciou a sua carreira, em 1975, até que lhe foi detectado "doping" no sangue, em 1997, foi considerado o maior futebolista à face da Terra. Hoje, a convalescer, em Cuba, de uma "overdose" de cocaína, Maradona é uma sombra da divindade que foi. Pior: é uma caricatura. Na Argentina, a sociedade que o endeusou e que, através dele, se sentiu no Céu, preferia agora vê-lo morto.
Roberto Perfumo, antigo capitão da selecção nacional argentina de futebol, explica a tragédia de Diego Maradona indo buscar referências à Roma imperial: "César tinha sempre a seu lado um escravo que lhe dizia: 'Lembra-te que és humano, lembra-te que és humano.' Com Maradona passou-se precisamente o contrário. Durante mais de 20 anos, foram-lhe sempre dizendo: 'Lembra-te que és Deus, lembra-te que és Deus.'"Maradona ouviu dizer que era um deus desde que iniciou a sua carreira no futebol profissional, em 1075 - com 15 anos de idade - até que a terminou, em 1997, depois do resultado positivo de uma análise de drogas após uma partida com o Boca Juniors, a sua equipa de eleição. Durante pelo menos metade desses anos, ele foi, sem sombra de dúvida, o melhor futebolista na face da terra. Hoje não é mais um deus, mas apenas uma sombra do atleta de outros tempos. Converteu-se num palhaço obeso que, no seu desesperado desejo de se destacar, de continuar a distinguir-se dos simples mortais, pintou os seus cabelos negros de um tom laranja-vivo que não é deste mundo. Actualmente, encontra-se em Cuba, em plena convalescença, após ter sofrido a catástrofe pessoal do milénio, no dia 4 de Janeiro deste ano 2000, quando tiveram de o levar para o hospital com o coração a ponto de rebentar, devido a uma "overdose" de cocaína, a droga que nunca poderá compensar a perda do seu vício mais empedernido: jogar futebol."A vida de um futebolista profissional é trágica por definição", explica Perfumo, que jogou no Mundial de 1966 e foi posteriormente capitão da selecção nacional de futebol da Argentina durante sete anos. "É trágica, porque está destinada a terminar embora se seja ainda jovem. Sente-se uma desolação terrível ao calçar as botas pela última vez. É uma espécie de morte. Viveu-se para jogar, foi-se uma estrela, um ídolo. Nunca conseguimos libertar-nos totalmente da tristeza de não poder voltar a jogar."Alguns lidam melhor com essa tristeza do que outros. Perfumo disse que passou muitos anos lamentando o fim dos seus dias como jogador. Mas hoje é psicólogo formado, escreve para um jornal e é o autor de um excelente livro intitulado "Jugar al Fútbol". É uma outra pessoa. Tal como aconteceu com outros futebolistas mais famosos do que ele, jogadores que subiram tão alto quanto Maradona, gente como Di Stéfano (também argentino), Cruyff, Pelé, que também foram no seu tempo o indiscutível melhor jogador do mundo.Porque não terá Maradona sido capaz de reorganizar a sua vida? Porque parece, na melhor das hipóteses, condenado a uma penosa decadência e, na pior das hipóteses, a uma morte prematura? Porque é que nenhuma das pessoas entrevistadas para este artigo - futebolistas, treinadores, e jornalistas argentinos que o conhecem bem; médicos, psicólogos, sociólogos argentinos que há muito o analisam - porque é que ninguém terá sido capaz de sugerir uma forma alternativa de vida que Maradona pudesse seguir para deter o seu declínio?Jorge Valdano, que saboreou com ele como jogador a vitória do Mundial de 1986 e que continua a ser um amigo leal, confessa que não faz a menor ideia de que conselho se poderia dar a Maradona, cujo destino, na sua opinião, parece seguir o mesmo caminho que o da princesa Diana. Rodolfo Urribarri, professor de Psicologia na Universidade de Buenos Aires, utiliza a mesma comparação e declara: "Quando penso em Maradona, imagino-o conduzindo em câmara lenta de encontro à mesma coluna que Lady Di."À primeira vista, qualquer comparação entre Maradona e Lady Di parece absurda. O robusto futebolista profissional, que cresceu junto dos pais e dos sete irmãos numa casa cujas três assoalhadas apenas estavam separadas por cortinas, e a elegante aristocrata inglesa, educada para ser rainha: Maradona e Diana quase pertencem a duas espécies distintas, dois planetas diferentes. No entanto, têm uma coisa em comum. Ele foi um deus e ela uma deusa. Ambos ultrapassaram a mera celebridade para se converterem em objectos de adoração das massas. Com a diferença que Maradona teve de sofrer as consequências destrutivas da sua idolatria num ambiente que, como disse Valdano, está menos controlado.Os seus guarda-costas não são austeros e solenes membros das forças especiais, mas amigos de infância, lá do bairro, que participavam nas sessões de droga, álcool e prostitutas. Não foi limitado pela etiqueta de uma antiga e venerável corte real; foi sempre o tímido rebelde, porta-voz dos pobres, o agitador novo-rico cheio de desprezo pela contenção da burguesia. E sim, é possível que Diana tivesse as suas noites de paixão desenfreada, mas, por muito don juan que Dodi fosse, Calígula teria corado perante a devassidão orgíaca de Maradona e da sua comitiva de boémios, fiéis como cães.Apesar de tudo, Maradona, como fenómeno social, está mais perto de Diana do que de Pelé ou de Cruyff. Nunca existiu, nem existe, um desportista que tenha inspirado uma devoção tão intensa, generalizada e hipnótica como Maradona. Para os argentinos e para os napolitanos - pois foi em Nápoles que passou os seus melhores anos como jogador - chegou a ser muito mais do que um futebolista dotado de um talento mágico. Pelé e Cruyff eram venerados, mas dentro do seu próprio âmbito desportivo. Tal como Michael Jordan no mundo do basquetebol ou como é hoje Tiger Woods na comunidade golfista. Ou seja, a maioria dos seus admiradores são homens. E os admiradores de Maradona no México, Espanha, Holanda, e no Bangladesh foram sobretudo homens. Porque o consideravam simplesmente um grande desportista. Mas na Argentina e em Nápoles, os seus devotos são populações inteiras de homens e mulheres. O exemplo mais espantoso é o caso de uma escritora argentina chamada Maria Dujovne Ortiz que vive em Paris e que confessa, sem problemas, que o futebol não lhe interessa absolutamente nada, mas escreveu um livro na primeira pessoa sobre o seu sentido de identificação com a superestrela do futebol, a que deu o título "Maradona C'Est Moi".Maradona experimentou em vida a adulação que Diana só inspirou depois da sua morte. Sobretudo em Nápoles chegou-se ao extremo de as pessoas andarem com medalhas ao pescoço não com a imagem de algum santo católico, mas com a do jogador; ergueram-se nas ruas altares com imagens suas ao lado da Virgem local e os habitantes da região, segundo o livro de Dujovne, fizeram mesmo uma letra profana para o Pai Nosso: Maradona nosso que desces ao campo./Santificado seja o vosso nome./Nápoles é o teu reino./livrai-nos de toda a ilusão/ e conduzi-nos ao 'scudetto' [o "scudetto" é o título da Liga da Primeira Divisão Italiana]. Evita Perón inspirou idênticas heresias. Depois da sua morte houve petições para que fosse canonizada (como no caso de Diana) e nas imagens da Argentina começou a aparecer retratada com um halo e manto azul como a Virgem Maria. Quando Evita morreu, a multidão de admiradores começou a rezar-lhe, como os napolitanos a Maradona: "Mãe nossa que estás no céu..."Podemos supor - quiçá precipitadamente - que ninguém pressionará o Vaticano para que canonize Maradona quando este morrer (embora ele não tenha dúvidas sobre o destino que o aguarda no Além, já que declarou recentemente em Cuba que não estava "pronto para ir para o céu"). Não importa. De certa maneira experimentou já a santidade na terra. Na Argentina, a analogia com Diana não é frequente, mas é quase um lugar-comum compará-lo a Evita, que teve a mesma história de ascensão da miséria à fortuna e cuja imagem de defensora dos pobres o jogador também possui.Maradona, tal como Moahmed Ali no seu tempo (e muito ao contrário de Pelé e de Cruyff), utilizou a sua fama desportiva como plataforma política. Uma plataforma populista. Aparece como um homem que nunca esqueceu as suas raízes pobres e que fala em nome dos seus semelhantes, esses a quem os ricos na Argentina chamam "los cabecitas negras"; considera-se a voz do povo enfurecido contra "os ladrões, os corruptos" que ocupam os cargos de poder, e criou uma reputação de homem com o valor necessário para apregoar as verdades. Este homem, que tem no braço uma tatuagem do Che Guevara e que diz que o seu ídolo cinematográfico é o Silvester Stallone, desempenha o papel do eterno rebelde.Ao longo dos anos criticou o governo argentino, o Papa, a FIFA, o Presidente dos Estados Unidos. Como diz Perfumo, recordando a sua própria experiência: "Contestamos tudo: desde o cinema, à religião e à política, porque nos sentimos Deus. Isso às vezes acontecia comigo. Agora envergonho-me disso."Maradona sente-se Deus porque as pessoas o fazem acreditar que é um deus. "E então", observa Urribarri, "não só quer falar de futebol, como de economia... do que quer que seja, porque sofre de uma espécie de inflação maníaca: subiu aos Himalaias e é o papa, o lama, o guru, tudo junto. Misturam-se nele o talento profissional e o génio opinador." A confusão reside tanto no público que o venera como no próprio Maradona. A palavra de Maradona parece sagrada, como se falasse com o pé esquerdo", afirma Jorge Valdano. "O erro está em dar relevância às coisas que diz."Relevante ou não, a sua mensagem política tem coerência. Dirige-se constantemente contra o sistema, seja ele qual for, embora lhe falte a elaboração de Che. Fala a linguagem do homem comum que clama contra o sistema, enquanto está com os seus amigos num bar. As pessoas querem-lhe ainda mais porque se identificam com as suas palavras. "Conquistou o povo argentino não só com o seu futebol, mas também com a sua retórica directa de denúncia.", explica Urribarri. "Utiliza 'slogans', frases curtas. Como o passo curto com que, com tanta mestria, arrancava pelo campo de jogo quando servia a bola de bandeja para que um dos seus companheiros marcasse o golo."Maradona, que, por acaso, nasceu num hospital que tem o nome de Evita Perón, jogou em vários clubes argentinos, mas o seu primeiro amor foi o Boca Juniors, a equipa tradicionalmente apoiada pelos habitantes da parte oriental e mais pobre de Buenos Aires, pelos desvalidos, naturalmente por Perón e pela sua esposa, que para eles representaram a promessa de restauração da ordem e da justiça social num universo imperfeito.. Tal como Evita, Maradona não vê nenhuma incongruência entre a sua mensagem e a ostentação de jóias e automóveis luxuosos, precisamente os sinais exteriores da riqueza que a alta burguesia tanto gosta. E os seus devotos desvalidos também não estranham. Vêem nele, como viam em Evita, a imagem do sucesso burguês a que aspiram.Cesar Luis Menotti, o lendário seleccionador que dirigiu a equipa argentina vencedora do Mundial de 1978, afirma: "Maradona é aquele que diz: ' Eu sou o povo.' E, de facto, ele transformou-se um pouco na voz do povo com esse carisma impressionante, essa enorme capacidade de provocação, de ser todos os dias notícia."Não se sabe o que diria Che sobre o facto de Maradona se considerar a voz do povo, mas o que é certo é que é esse híbrido estranhamente argentino de opulência e demagogia, partilhado por Maradona e Evita, que une num vínculo carismático a eles, os líderes, com os seus seguidores enfeitiçados.Maradona é o terceiro elo de uma cadeia que une Evita ao grande ídolo nacional que a precedeu, o Elvis Presley da Argentina, o inolvidável cantor de tangos Carlos Gardel. Diz-se que Gardel, Evita e Maradona formam a Santíssima Trindade da Argentina. Em Nápoles, também existe uma trindade: São Januário (o padroeiro da cidade), Garibaldi e Maradona."Em ambos os lugares", explica Rudolfo Urribarri, "foi, como dizia Lennon dos Beatles, maior que Jesus."Que terá Maradona para ter inspirado esse fanatismo em argentinos e napolitanos? Em ambos os casos, era, embora de forma fugaz, o redentor. Porque ambos os lugares sofrem de uma patologia semelhante: têm os olhos postos no Norte e sofrem da angústia dos desvalidos. Até que chegou Maradona e - através desse grande motor de paixões que é o futebol - lhes trouxe a vitória e, com a vitória, a salvação.É isto que cantam as claques do futebol, em Roma, Turim e Milão quando o Nápoles os visita, segundo cita Eduardo Galeano no seu livro "A Sol y Sombra": "Que mau cheiro,/Até os cães uivam./Vêm aí os napolitanos.../Nápoles, merda: Nápoles, cólera./ És a vergonha de toda a Itália."Os cânticos têm resultados ainda mais perversos porque mexem com as inseguranças reais que os italianos do Sul, mais pobres e de pele mais escura, possuem, de cada vez que se comparam neuroticamente - como fazem sempre - com os seus cruéis primos do Norte. A única arma que possuem para combater o Norte é o futebol, mas durante 50 anos, até à chegada de Maradona, não lhes serviu de nada. Depois, com Maradona na equipa - um Maradona baixo, de pele tisnada e da classe operária como eles -, não só se viram abençoados com o melhor jogador do mundo, num país que venera um jogo bonito, como também conseguiram vencer os detestados Juventus, Roma e Milão. Ganharam o "scudetto" e os mesmos a quem tinham chamado "a vergonha de Itália" viram-se transformados na glória da Itália. E tudo graças a Maradona, em honra de quem cantaram hinos e ergueram altares de extravagante agradecimento.Os sentimentos dos argentinos com respeito ao Norte são mais complexos, mas não menos profundos. A Argentina é uma nação jovem quase inteiramente descendente de imigrantes europeus. As ruas de Buenos Aires parecem europeias; as pessoas não só parecem como se sentem europeias. E, no entanto, sofreram as mesmas calamidades que o resto das nações latino-americanas que, no fundo dos seus corações, desprezam: governantes corruptos, cruéis regimes militares, uma economia de montanha-russa. Os argentinos sentem-se num estranho limbo. A primeira geração de imigrantes não chegou com a intenção de se estabelecer e criar raízes, mas sim com a intenção de fazer a América, ou seja, enriquecer rapidamente e regressar a Itália, ou a Espanha, para exibir essa riqueza aos olhos dos familiares e amigos que haviam ficado para trás. Poucos o conseguiram. A frustração da grande maioria que não o conseguiu transmitiu-se de geração em geração e encontrou a sua expressão nas letras desoladoras e nostálgicas do tango. A frustração é ainda mais profunda porque todo o mundo sabe que a Argentina é um país culto e pouco povoado, muito rico em recursos naturais, que deveria figurar entre as nações mais prósperas do mundo. E, no entanto, resumindo numa frase que os argentinos proferem constantemente e com amargura "Aqui estamos nós na cauda do mundo.""Temos uma grandeza que não sai", diz Alberto Quevedo, professor de Sociologia . "Estamos sentados em cima de um cofre de ouro que não podemos abrir e, por isso, sabemos que somos grandes mas não o podemos demonstrar. É uma cultura de frustração. Como pode não ser este um grande país?"Essa é, em parte, a razão por que Buenos Aires é desde há muito tempo a cidade com a proporção de psicoterapeutas por habitante mais elevada de todo o mundo. Jose Abadí, um destacado psicoterapeuta local e conhecido apresentador de um programa televisivo cultural, fala de um problema de inferioridade congénito. "Possuímos um fortíssimo complexo de inferioridade porque temos esta sensação de que estamos aqui por equívoco, ou que somos uma sucursal da Europa, ou que viemos para enriquecer e depois ir embora. Mas não somos ricos, nem sequer somos uma sucursal."Ainda assim, existe esta profunda convicção nos corações dos argentinos de que, se lhes fosse possível dar a conhecer e expressar a sua verdadeira natureza, poderiam provar que são tão bons como a Europa dos seus antepassados e até bastante melhores. Maradona acabou por converter esses sonho em realidade, ou melhor, fez-lhes crer que não se tinham estado a enganar em toda a sua história."Quando Maradona apareceu", explica Quevedo, "e ganhámos o Mundial de 1986, demonstrámos finalmente ao mundo que somos efectivamente os maiores, porque, para ganhar e triunfar na Argentina, já se sabe que é preciso ganhar e triunfar no estrangeiro; temos de obter o reconhecimento do mundo, e, principalmente, da Europa. Ganhar o Mundial com Maradona foi como dizer aos nossos pais: 'Fizemo-lo muito bem, na verdade, melhor que vocês.'"Se, num inquérito, perguntássemos aos argentinos qual é o momento mais importante da história do seu país, ou, pelo menos, dos últimos 50 anos, a maioria diria seguramente que é o segundo golo de Maradona marcado contra a Inglaterra nos quartos-de-final do Mundial de 1986, o golo que deu a vitória, por 2-1 à Argentina, numa partida muito equilibrada e que conduziu à vitória contra a Alemanha na final. Um dos momentos gloriosos da cultura popular argentina nos últimos anos é a retransmissão pela rádio feita por outro herói nacional, Victor Hugo Morales, daquele segundo golo contra a Inglaterra, que reúne o consenso de ser o melhor golo alguma vez marcado num Mundial de futebol. Quando Morales gritou, como é hábito dos comentadores argentinos, "Gooooooooolo!", não gritou apenas "Gooooooooolo!", mas "Guaaaaoooooooooooooolo!" e repetiu três vezes com um grito que não lhe vinha da garganta, mas das entranhas, de alguma parte da sua alma que se encontrava reprimida e fervia de desejo de escapar e voar até ao céu. "Diegoooooooooooooo!" gritou Morales. "Maradoooooooona! O melhor jogador de todos os tempos!.... De que planeta vieste?... Argentina 2, Inglaterra 0! Diegoooooooolo! Diegoooooooolo! Diego Armando Maradona!" Por fim, Morales fez uma pausa, recuperou o fôlego, acalmou o seu coração agitado. Na rádio, ouviu-se o que poderia ser um soluço. Morales prosseguiu num tom de voz mais baixo, mas mais fervoroso: "Obrigado, meu Deus, pelo futebol..., por Maradona... por... estas lágrimas, por este... Argentina 2 [soluço claramente audível], Inglaterra... 0..."É possível que pouca gente tenho ouvido Morales naquele dia, dado o frenesim do momento; mas a partir daí, na Argentina, passou a ser repetido sem cessar, como recordação daquela data, do momento em que a nação dos eternos frustrados chegou ao cume da montanha, descobriu a Terra Prometida, e viu como eram ouvidas as suas preces mais profundas. O golo foi de sonho. Maradona recolheu a bola no seu meio campo, sem possibilidades visíveis de golo. Começou a correr em direcção à defesa inglesa e continuou a correr, a correr e a fintar e correndo de novo, e os jogadores ingleses, altos, louros que pareciam ter o dobro do tamanho dele, começaram a olhar para um lado e para o outro, atordoados e foram caindo que nem tordos, e Maradona continuou a correr a toda a velocidade, perfeitamente equilibrado com a bola colada aos pés por um fio invisível, até que ficou frente ao guarda-redes, a quem também enganou, fingindo rematar para um lado e tendo ido para o outro lado, contornando-o, passando veloz por ele e tendo apenas de meter a bola numa rede vazia.Mas aquele "Guaaaoooooolo" que Morales gritou naquele momento de comunhão com a euforia de toda uma nação transmitia emoções, ânsias e desejos que iam muito além do contentamento de um amante do futebol ao ver o seu jogador preferido marcar um golo de uma extraordinária beleza estética. Maradona proporcionou à Argentina com aquele golo a doce vingança que deu ao povo de Nápoles quando deu cabo dos ogres do Norte da Itália. A Inglaterra fora sempre, na anacrónica mentalidade argentina - herdada directamente dos imigrantes do início do século -, a grande potência europeia. Mais ainda, a Inglaterra era o país que durante 150 anos fizera lembrar à Argentina a sua incapacidade na posse das Malvinas e que acabara ainda por pôr sal na ferida ao derrotá-la na guerra travada no Atlântico Sul ocorrida apenas quatro anos antes daquele golo. Por tudo isso, os argentinos saborearam quase tanto o primeiro golo de Maradona naquele encontro como o segundo. Marcou-o com a mão: deu um valente soco na bola fazendo-a passar por cima do guarda-redes - com a sua famosa mão de Deus -, mas o árbitro não viu e a espantosa injustiça daquele tento contribuiu amargamente para a desolação da Inglaterra ao perder o encontro, e continuou a ser um espinho na consciência de qualquer inglês amante de futebol ao longo dos 14 anos que se passaram desde então.Menotti é um homem que entende todas as complexas razões que levaram a que a vitória em 1986 sobre a Inglaterra fosse, como ele diz, tão transcendente para o seu país. "Graças a esta raça de imigrantes que tivemos, formou-se um país bastante especial para a América do Sul, um país onde as pessoas dizem que estão na cauda do mundo. Mas tivemos a sorte não só de Maradona ter sido admirado no mundo inteiro, mas também de ele ter marcado esse golo precisamente contra os ingleses quatro anos depois das Malvinas. Marcou o golo com a mão. 'Tanto melhor"', dizem. 'Perdemos a guerra, mas no futebol lixámo-los com um golo marcado com a mão.'""Lixámo-los." Não, Maradona é que os lixou. Assim é que foi. Maradona é o símbolo de todo o povo argentino, o vingador do orgulho ferido da nação. É o homem que, com esses dois golos naquela partida contra os ingleses expressou na perfeição as duas qualidades que os argentinos acreditam ter com mais abundância: a sagacidade e o talento. O homem que é a reincarnação do ídolo máximo da Argentina, Evita. O homem que deu corpo ao mito da passagem de pobre a rico que faz parte do sonho argentino: um sonho que é o sonho americano, embora a Argentina não o tenha conseguido.Num pequeno livro de um (outro) psicólogo argentino, Gustavo Bernstein, intitulado "Maradona: Iconografía de la Pátria", o autor escreve: "Maradona é a nossa maior referência. Ninguém melhor que ele personifica a nossa essência, ninguém exibe melhor o nosso emblema. A ninguém mais, nos últimos 20 anos se ofereceu mais paixão... A Argentina é o Maradona. Maradona é a Argentina."Jose Abadí não nega a veracidade disto, mas tal como acontece com alguns, poucos, argentinos, fica horrorizado com o facto. "Porquê Maradona? Porque ganhou o Mundial de Futebol; porque venceu lá fora, porque também lá lhe chamaram deus, e isso confirmou-nos o que já sabíamos, que Deus é argentino. Acreditam que com esse jogo de futebol apagámos a memória da derrota na guerra, e não apenas isso, mas também que agora somos tão grandes como a Inglaterra, uma das civilizações mais poderosas da história universal! É ridículo! É infantil!"As pessoas contam sempre: 'Sabes o que dizem lá fora? Eu digo que sou argentino e as pessoas respondem: Ah, Maradona!' E sentem-se orgulhosos. É vergonhoso! É dramático! Isto de que ele ser a bandeira, o redentor, vem do medo terrível de que o mundo não se aperceba da nossa existência. Que graças a ele nos conhecem, porque o perigo de se ser argentino é o de não existir."Num certo sentido, é verdade. A Argentina não é um país que possa pretender ter grande presença mundial. Antes de Maradona, quando um argentino viajava ao estrangeiro perguntavam-lhe: "Onde é que isso fica?"E por muito talento e sagacidade que acreditem ter - ou talvez tenham -, a verdade é que no que diz respeito à imagem internacional apenas se distinguiram no mundo pela sua capacidade de bem jogar o futebol.Isso, sim, particularmente no caso de Maradona. Que grande futebol! Como disse Menotti, Maradona não era um mero futebolista, era um artista. Nesta era da televisão em que Maradona teve a sorte ou o azar de nascer, a grande literatura ou a grande arte não decidem o prestígio de uma nação tanto como o futebol, que acaba por ser uma espécie de guerra. Quase todo o mundo está de acordo que Jorge Luis Borges é não só o escritor mais importante da Argentina, como o melhor escritor entre os que nunca obtiveram o Prémio Nobel. "O futebol é popular", declarou uma vez, "porque a estupidez é popular."Talvez. No entanto, é muito maior o número de pessoas no mundo que conhece a obra de Maradona do que o dos que conhecem a de Borges.Menotti treinou-o na selecção nacional argentina e, durante um breve período, no Barcelona. "Sim, ele sempre teve o reconhecimento dos seus companheiros", diz. "Ficava tão contente quando eles marcavam golos como se tivesse sido ele próprio a marcá-los. Mas os outros jogadores também sabiam que era ele que ganhava o encontro quando estava inspirado. Era um grande futebolista, não só no jogo individual, mas em todos os aspectos. Sabia que o futebol é um jogo de equipa e tinha essa visão de conjunto. Para além da sua técnica genial era um grande conhecedor do jogo."Mas era a sua genial técnica de jogo que o distinguia. "A bola, que para nós era algo que tínhamos de dominar, era para ele como que um prolongamento do seu corpo", explica Valdano. "Depois dos treinos ele ficava a jogar e eu ficava a vê-lo. Era outra profissão, a minha da dele."Este último argumento é o que utilizam os que defendem que o melhor jogador da história do futebol é Maradona e não Pelé. Valdano é um homem inteligente, cuja mente, ao contrário de Maradona, é mais rápida que os seus pés. Era um dos dez jogadores que acompanhavam Maradona quando a Argentina ganhou o Mundial de 1986, dez futebolistas bastante comuns, na opinião da maioria dos analistas; era o mesmo que dizer que Maradona ganhara aquela taça quase sem ajuda, ao passo que Pelé ganhou as suas sempre acompanhado de outros jogadores geniais, que provavelmente teriam vencido mesmo sem ele.Será que futebolistas como Valdano invejavam Maradona? Não. Porque o seu talento era tão extraordinário, tão inigualável, que não havia comparação possível. O dinheiro que ganhou poderia ter causado azedume entre os seus companheiros, mas a sua generosidade nesse domínio também contribuiu para que lhe tivessem afecto. "Na selecção, em partidas amigáveis", conta Valdano, "tínhamos um pagamento com Maradona e outro sem Maradona. Digamos, números significativos, 500 mil dólares com ele, e 300 mil sem ele. A Associação de Futebol Argentina dava-lhe a diferença a ele e ele repartia entre todos os jogadores." Os futebolistas gostavam dele, as claques adoravam-no. Como diz Urribarri: "Vê-lo jogar futebol era a cocaína de dez milhões de argentinos." Transformava-se em São Januário, em Evita e no herói vingador argentino, o que matou o dragão inglês, tudo graças ao seu talento futebolístico. Só chegou a ser um deus fora do campo porque era um deus dentro dele.Quando as realidades inelutáveis do tempo e a decadência o obrigaram a abandonar o futebol, a cocaína permitiu-lhe o êxtase fugaz e imaginário de recuperar aquela glória que tinha sido Maradona. Como diz Menotti, "Maradona tem dois vícios: um é a droga, mas a mais grave doença de Maradona é o sucesso."Urribarri, uma autoridade em toxicodependência, explica que não é por acaso que a droga escolhida pelo jogador tenha sido a cocaína. "Porque a cocaína provoca essa sensação de se ser super-homem, de que não há quem nos pare, como quando ele marcou esse golo contra a Inglaterra."A condição de super-homem exige também que Maradona continue a ser uma figura pública. O que significa que, se por um lado protesta contra a intrusão da comunicação social na sua vida, por outro precisa dela - com a mesma ambiguidade que Diana -para manter viva a idolatria.Se não, como se explicaria que, enquanto jazia no seu leito de hospital em Buenos Aires a recuperar da sua última batalha com a morte, tenha convidado as câmaras de televisão a entrar no seu quarto às três da manhã e tenha concedido uma entrevista à Fox TV, da qual foi transmitida uma hora, mas que na realidade durou três? Rouco, arrastando as palavras, em estado semicomatoso. Mesmo assim, foi incapaz de conter os seus impulsos demagógicos e exprimiu o seu amor pelo povo cubano e pelo comandante Fidel.Já de pé, em Havana, no dia 4 de Fevereiro não resistiu ao convite para falar a 500 desportistas cubanos de ambos os sexos, numa cerimónia oficial. Os cubanos ofereceram-lhe uma fotografia que se apressou a levar aos lábios depositando nela um beijo longo e interminável. Era uma foto de Che Guevara que, depois de beijar, ergueu como se fosse a Taça do Mundo entre os vivas da multidão.Nesse momento era o Maradona público. Mas logo disse uma coisa que revelou um vislumbre do verdadeiro Diego, submerso sob as capas populistas. "O futebol é uma paixão como o amor que tempos pela nossa mãe", disse "O meu coração agora não está muito bem, mas vejo uma bola e desespero-me. Estou louco por jogar."Praticamente o mesmo que disse em finais do ano passado, depois de receber o prémio de desportista argentino do século. "Quando se joga, crê-se que o futebol nunca irá acabar", disse com as lágrimas a cair. "Mas acaba, acaba", prosseguiu. " E a gente não sabe o que há-de fazer quando não pode oferecer golos aos filhos."Filhos? Só podia estar a falar dos seus admiradores, dos seus fiéis, para os quais é um deus. E sem cuja adoração se vai abaixo, à medida que vê a erosão dessa outra pessoa pública que o consumiu e o obriga a ver o seu verdadeiro eu no espelho, uma imagem terrível do declínio de Dorian Gray.Por isso, procura refúgio na evasão que as drogas lhe proporcionam, e por isso parece pouco provável que alguma vez se liberte dessa dependência. "Não consegue libertar-se da dependência das drogas, porque tem de fazer um esforço supremo para o conseguir", explica Abadí. "Mas não é capaz desse esforço porque é uma pessoa que sempre acreditou que podia conseguir fosse o que fosse com a sua invencibilidade, com um milagre, pela mão de Deus. E a verdade, a dependência não se pode curar. Maradona caiu inteiramente derrotado e destruído pelas drogas. 5-0, 6-0."Será que Maradona poderia ter vivido a sua vida de outra maneira? Será que poderia ter-se afastado para uma doce obscuridade como outros grandes jogadores do passado? Certamente que não. É costume dizer-se que a sua doença - chame-se-lhe sucesso, como disse Menotti, ou endeusamento, segundo as palavras de Perfumo - é consequência de ter crescido no meio da miséria e sem instrução. Mas qualquer adolescente, por muito bem acomodado e educado que seja, teria enlouquecido se lhe sobreviessem a riqueza, o aplauso e a idolatria que caíram bruscamente sobre Maradona, quase no exacto dia em que começou a jogar futebol profissional - até aí fora apenas expectativa - aos 15 anos. "Não há preparação possível para o grau de acossamento que Maradona sofreu", diz Valdano.Valdano refere-se talvez à comunicação social. Mas a comunicação social nada mais fazia do que satisfazer as necessidades das massas adoradoras, as que não deixavam de lembrar-lhe a todo o instante que era deus. Numa entrevista ao jornal argentino "Clarín", publicada no dia 2 de Janeiro, Maradona, referindo-se à Argentina, disse: "Este país está drogado."Maradona foi o ópio do povo. Em "Maradona C'Est Moi", a autora refere uma entrevista com o advogado do jogador em Nápoles, Vincenzo Siniscalchi, efectuada depois de o terem acusado pela primeira vez de posse de drogas. Siniscalchi resume de uma forma impressionante a situação dramática de Maradona. Fala de Nápoles, mas poderia estar a referir-se à melodramática Argentina: "Nápoles é uma cidade asfixiante que adora em excesso e que acaba por consumir aqueles que ama... Diego, um ser limitado, ingénuo e frágil foi a vítima ideal destas paixões ferozes. Não ter tido uma vida normal, ter passado da miséria à glória e não ter tido oportunidade de construir a sua personalidade são coisas que o condenaram a ser tragado pela sociedade do efémero cujo reino é a noite."Por outras palavras, Maradona não tinha escolha. Era a crónica de uma tragédia anunciada. Por essa razão é que, como diz Perfumo, é injusto julgá-lo da mesma forma com que se julga uma pessoa comum, "porque o endeusamento dá fama e glória, mas rouba a vida". E impede as pessoas de ouvirem as críticas, porque, se se acham Deus, são superiores a elas. Rodeiam-se de adoradores e não de verdadeiros amigos - como os que as pessoas comuns têm - preparados para lhes dizerem as verdades. O próprio Menotti, que foi como um pai para Maradona, teve noção disso, quando, em determinada altura, lhe sugeriu que os problemas dele precisavam de ajuda psiquiátrica. Maradona esteve anos sem lhe falar. "Sentiu-o como uma punhalada", diz Menotti, que descobriu como tantos outros, que "não se pode tocar em Maradona".Talvez essa falta de introspecção, essa incapacidade de aceitar críticas seja o trágico defeito de Maradona. A arrogância dos clássicos. Mas também aqui não tinha escolha. Porque se converteu num deus depressa demais, quando era ainda quase uma criança, antes de ter oportunidade de construir de forma natural a sua própria personalidade, e não uma personalidade inventada pelos seus seguidores, sedentos de glória.Mas o mais terrível é que muitos membros dessa mesma sociedade que o endeusou e que tanto o desfrutou parecem desejar do fundo do coração que estivesse morto. No último mês, desde que desceu à mais abjecta fantochada, são recebidas nas emissoras de rádio argentinas inúmeras chamadas telefónicas que pedem aos gritos vezes sem conta: "Que morra! Que se mate!"Alberto Quevedo, o sociólogo, tem uma interpretação para isso: "Todos nos envergonhamos, porque ele foi muito importante para os argentinos. E a morte glorifica-o. Maradona já não tem mais para dar e tal como Aquiles deve morrer jovem e glorioso. Não pode dar mais, e o que irá fazer daqui para a frente será seguramente vergonhoso. Não é que as pessoas o queiram matar. Mas, simbolicamente, sim. Queremos guardar na memória a glória e não assistirmos ao seu declínio, porque isso é insuportável.""O ídolo caiu e atraiçoou o idólatra", é a explicação dada por Jose Abadí ao clamor 'Que morra!'. "Nós somos os maiores quando Maradona é o maior, mas quando Maradona cai nós caímos também. E isso nós não queremos."Voltarão a adorá-lo como nos dias de glória, quando já tiver morrido. Desfilarão perante o seu caixão, dias a fio, como fizeram quando Evita morreu; levarão toneladas de flores como os ingleses fizeram quando da morte de Diana. Derramarão lágrimas de tristeza e gratidão; recomendá-lo-ão aos céus com preces; na televisão ver-se-á incontáveis vezes o segundo golo que marcou contra a Inglaterra no Mundial de 1986; e imortalizá-lo-ão em bronze, como fizeram com Gardel, com uma inscrição a dizer: "Obrigado, meu Deus, pelo futebol. Obrigado meu Deus por Maradona".