O mar por Leitão de Barros

Em 1930 Leitão de Barros realizava um dos filmes mais importantes da história do cinema português: "Maria do Mar". Setenta anos depois a cópia restaurada é apresentada pela Cinemateca Portuguesa enquanto se ouvirá ao vivo uma composição original de Bernardo Sassetti feita especialmente para este filme. Hoje na Culturgest, em Lisboa, amanhã no Rivoli, do Porto.

A versão restaurada de "Maria do Mar", um filme mudo de José Leitão de Barros de 1930 sobre a vida dos pescadores da Nazaré, é hoje apresentada na Culturgest, em Lisboa, e amanhã no Teatro Rivoli, no Porto, ao mesmo tempo que Bernardo Sassetti, juntamente com uma orquestra para 15 elementos, dirigida pelo maestro Vasco Pearce de Azevedo, toca ao piano e apresenta a nova partitura musical composta especialmente para o filme. A voz de Filipa Pais também se ouvirá, em duas das cenas do filme.O restauro foi feito pelo Arquivo de Imagens em Movimento (ANIM), departamento da Cinemateca Portuguesa, e a apresentação do filme integra-se no debate que decorre desde ontem e até domingo em Sintra entre vários peritos europeus, intitulado "Estados Gerais do Património Cinematográfico na Europa" e organizado por este instituto no âmbito da Presidência Portuguesa da União Europeia."O 'Maria do Mar' é um dos mais importantes, senão o mais importante, dos filmes de longa-metragem do cinema mudo português e um dos melhores do mundo dentro do género em que se inscreve", explica José Manuel Costa, vice-presidente da Cinemateca. "É uma obra que, para além dos seus valores intrínsecos, traz uma sintonia com os movimentos de vanguarda do cinema internacional do final dos anos 20, o que não se nota em muitos filmes portugueses na época. E isso é uma marca evidente." Um filme também curioso, forte, tanto pela caracterização das figuras, como pela forma como constrói e desenvolve a história em termos plásticos: "Em relação à generalidade dos filmes de ficção mudos, tem a grande diferença de introduzir de uma forma bastante mais clara a linguagem mais avançada da época."Há outros filmes de Leitão de Barros, igualmente importantes, como "Ala-Arriba", de 1942, que ganhou a Taça Biennalli da Bienal de Veneza, ou "Inês de Castro", de 1945, que obteve o primeiro prémio da cinematografia espanhola, mas para José Manuel Costa, "Maria do Mar" representa o ponto alto da obra do cineasta que nasceu no Porto a 22 de Outubro de 1896, e se formou em Arquitectura. Foi também pintor de aguarelas, coreógrafo, autor dramático, secretário-geral da Exposição do Mundo Português (1940), professor, autor de livros didácticos, decorador de cerimónias, tendo sido director do "Século Ilustrado" até 1940 e colunista numa secção que intitulou "Os Corvos" no "Diário de Notícias". Num artigo sobre o filme, a primeira longa-metragem de Leitão de Barros, que ele denominou "documentário dramatizado da vida dos pescadores da Nazaré", João Bénard da Costa, director da Cinemateca, escreveu que é uma obra marcada por "ousadias eróticas" e sequências sensuais, "um dos exemplos mais conseguidos à época em que foi feito de abordagem documental de uma ficção dramática e lírica", conseguido "através de uma encenação que é uma das sínteses mais poderosas e singulares do realismo expressivo germânico, do conceptualismo soviético e do cultismo representativo americano", influências trabalhadas sobre "uma realidade tão sui-generis, e tão portuguesa, como a Nazaré.""Maria do Mar" apareceu numa época de transição, de experiências, que culminaria naquilo que viria a ser o cinema sonoro e em que houve uma evolução da linguagem utilizando-se as potencialidades da lógica da montagem, herança da escola soviética. Começava-se a dar uma maior atenção à observação do real e criticava-se a filmagem em estúdio. É este o espírito percursor do novo realismo e do documentarismo, e neste sentido, "Maria do Mar", diz José Manuel Costa, "sendo uma obra de ficção tem muitos aspectos do documentário", até porque actores se misturam com pessoas que não o são.Se há filmes que se perderam (cerca de 90 por cento do cinema mundial do mudo, anterior aos anos 30, desapareceu), há também redescobertas a fazer na história do cinema português - apesar "do cinema português ser pequeno". Novas maneiras de ler os filmes, que renascem através da sua recontextualização e do restauro das suas qualidades técnicas: "Igual ao original nunca é, mas podemos aproximar-nos." "Maria do Mar", apesar de já ter sido copiado nos anos 70, foi agora objecto de uma nova intervenção, pois foi considerado que existiam condições para o copiar, duplicar e restaurar em melhores condições técnicas."É um filme de que ainda temos o negativo de câmara original e isso é precioso. Em termos físicos há alterações mas a imagem está bastante boa. O que não quer dizer que não tenha problemas de restauro inerentes", explica José Manuel Costa. Como o facto de em "Maria do Mar" haver muitas "desigualdades fotográficas"."Não queremos tapar com o restauro os defeitos inerentes à própria geração do filme. Podemos tentar melhorar em relação à qualidade da cópia inicial mas não é nosso objectivo transformar as características da obra", como a sua densidade e contraste. "O que é muito interessante é que o restauro leva-nos a uma versão muito próxima do original mas também ao conhecimento das limitações da qualidade fotográfica da época."

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