Quarto com vista sobre a cidade
Depois das alusões à velha Lisboa presentes no último trabalho dos Walkabouts, Chris Eckman abre agora o seu livro de recordações e conta em disco a experiência solitária da sua estada numa "cidade plantada à beira de um grande rio". É "A Janela", um álbum que Eckman escreveu de e para Lisboa.
Entre Chris Eckman e Lisboa há uma história de amor à primeira vista. O vocalista dos Walkabouts habitou a capital portuguesa durante o último ano da sua vida, e entre a descoberta do fado e as caminhadas solitárias pelas ruas da velha cidade encontrou "nessa combinação estranha de sol, de mar, das gentes generosas e da alma melancólica" a redenção que lhe permitiu ultrapassar a "fase pessoal profundamente tumultuosa" por que passava na altura em que chegou. Se os espectros de Lisboa habitavam já as canções da inquietação presentes em "Trail Of Stars", o último trabalho dos Walkabouts, eles são o pano de fundo de "A Janela", álbum que Eckman assina a solo e que apenas pode ser adquirido via importação FNAC ou por encomenda postal através da editora Glitterhouse. Tal como os "fragmentos de cidade" que captou da sua janela do bairro da Lapa, o vocalista dos Walkabouts pintou em pequenos quadros as estórias da sua história de Lisboa."Estive pela primeira vez em Lisboa em meados dos anos 80, no decurso de uma viagem turística que então fiz pela Europa. Fiquei por poucos dias, suficientes contudo para me sentir desde logo fascinado pela cidade. Regressei depois em 1997 para promover o "Nighttown", dos Walkabouts, e voltei um ano depois para produzir um álbum de uma banda norueguesa. Andávamos à procura de um local para fazê-lo, e sugeri que o fizéssemos em Lisboa. Nessa altura, estava exausto da vida que levava em Seattle, buscava um local sereno onde me pudesse entregar de corpo e alma à escrita de canções. E Lisboa pareceu-me o local perfeito.""Lisboa é para mim um dos locais mais interessantes da Europa. É uma cidade em rápida transformação, com uma economia em crescimento patente numa série de novas construções, uma cidade em acelerada viragem à modernidade urbana. Mas é por outro lado um dos poucos locais na Europa que ainda preserva os seus elementos mais tradicionais, aquilo que vocês designam pelos traços da velha Lisboa. Seattle, de onde venho, é uma cidade com cem anos, uma cidade onde esta fascinante tensão entre o velho e o novo simplesmente não existe. E mesmo na maioria dos países da Europa que visitei, senti que este lado mais tradicionalista tende a desaparecer e a dar lugar aos arquétipos da cidade moderna. Na Europa, como em qualquer outro lado, o velho está cada vez mais confinado ao trabalho de arquivo museológico. Lisboa ainda é uma excepção." "Quando cheguei, encontrava-me numa fase pessoal profundamente tumultuosa. Estava cansado da mesquinhez da indústria musical, vinha do término de uma longa relação amorosa, sentia-me como um animal perdido e sem referentes às voltas numa jaula pequena. Mas acabei por encontrar bons amigos em Lisboa. Produzi o álbum dos Raindogs, conheci aquela que é hoje a minha namorada, enfim, passei por uma série de acontecimentos que me levaram a ficar. Hoje reconheço que Lisboa desempenhou um papel redentor nos acontecimentos recentes da minha vida. Essa combinação estranha de sol, de mar, das gentes generosas e da alma melancólica da velha cidade ajudaram-me a sair da corrente difícil por que passava na altura em que cheguei. É difícil descrevê-lo, mas aconteceu." "'A Janela' é o meu testemunho pessoal sobre a experiência de transição que Lisboa representou para mim. O fim da velha relação e o início de um novo amor. Sentia dor e esperança ao mesmo tempo, e a dinâmica do álbum assenta numa estranha tensão entre estes dois sentimentos. 'A Janela' é uma carta de amor a uma relação passada e a uma relação futura, na mesma medida em que é uma carta de amor a uma cidade. Mais do que a qualquer outra pessoa, dedico-o à Gabriela, a minha namorada em Lisboa. Foi ela quem me forneceu um porto quando mais precisava dele." "Lírica e musicalmente, 'A Janela' está longe de ser um guia turístico pelos sonhos e pelas sombras de Lisboa. É quanto muito a visão de um homem solitário sobre esta cidade plantada à beira de um grande rio. Quando cheguei, via muito pouca gente. Sentia-me uma espécie de homem misterioso às voltas pelas ruas da cidade, onde por vezes me reconheciam e me abordavam, para logo me deixarem a sós comigo mesmo. Passei dias a fio sem falar com ninguém. Comecei por ficar alojado durante uns bons três meses num apartamento situado no topo do bairro da Lapa, e foi durante esse período que escrevi aquilo que acabaria por resultar no 'Trail Of Stars', o último trabalho dos Walkabouts. Escrevia imensas canções com a única intenção de escrevê-las, sem olhar para este ou para aquele sentido particular. Quando parei para pensar, senti que tinha ficado com dois tipos distintos de canções: um quadro de canções universais, que utilizei no 'Trail Of Stars', e um quadro de canções íntimas e pessoais, assustadoramente pessoais, talvez as mais pessoais que alguma vez escrevi. No início, não tinha intenção de editá-las. Mas depois de gravá-las, acabei por avançar com 'A Janela'." "O fado foi uma das minhas grandes revelações em Lisboa, ao ponto de lhe dedicar hoje uma importante parte da minha discografia. Camané é o meu favorito. Ele é para mim um dos maiores cantores que actualmente existem no mundo. O álbum 'Na Linha da Vida' é um verdadeiro clássico. Por outro lado, e embora seja quase um 'cliché' dizê-lo, também gosto imenso da Amália, sobretudo da Amália de 'Com que Voz'. Outro álbum que me marcou, mas que me parece ter passado um pouco ao lado do público, foi 'A Guitarra e Outras Mulheres', do António Chainho. Tem um sentido de experimentação e aventura que é difícil encontrar na maioria dos álbuns de fado. E o título do álbum é qualquer coisa. Uma descoberta mais recente é 'Um Homem Na Cidade', do Carlos do Carmo. Muito clássico. Outros artistas portugueses de quem gosto são os Madredeus, o Sérgio Godinho, o José Mário Branco, a Marta Dias e, claro, os Raindogs. Não digo isto apenas porque os produzi, mas sobretudo porque algumas das suas canções, em particular o 'Silver jet', estão entre as minhas favoritas do ano passado. Existe ainda uma cantora cabo-verdiana chamada Lura, que escreveu a canção 'Nha vida' na compilação 'Onda Sonora' dedicada a Lisboa. O que é que lhe aconteceu? Porque é que nenhum álbum dela foi até agora editado? É uma senhora deslumbrante."