Os mensageiros da soul
Em 1995, através do álbum "Brown Sugar", D'Angelo definiu novas coordenadas para a música soul. Quatro anos depois, a afirmação da sua música, ao mesmo tempo que a de Maxwell, Erykah Badu, Adriana Evans, Macy Gray ou Kelis, constitui a prova de que a geração "nu-classic soul" vingou.
O novo e magnífico álbum de D'Angelo, "Voodoo", segue-se ao seu primeiro longa-duração, intitulado "Brown Sugar", editado em Outubro de 1995. Nesse disco emblemático, D'Angelo propunha um regresso à soul de matriz clássica - personificada pelos períodos áureos das carreiras de Marvin Gaye, Curtis Mayfield, Stevie Wonder, Al Green ou Smokey Robinson -, mas segundo uma encenação original, onde ecoavam batidas de hip-hop, sentimentos mais próprios do blues e uma forma orgânica de encarar a base instrumental que devia algo ao jazz. A designação "nu-classic soul" começou a ser utilizada com insistência a partir daí e o estilo produziu descendência em nomes como o de Maxwell, Erykah Badu, Adriana Evans, Macy Gray, Kelis, Eric Bèdet, Lauryn Hill, Mary J. Blige, Missy Elliot ou Timbaland. Tudo figuras da soul, r&b e do hip-hop soul que nos últimos anos têm lançado discos de prestígio e que, de uma forma ou de outra, segundo intensidades diferentes, devem algo a esse disco embrionário de D'Angelo. Neste momento, enquanto a esmagadora da música soul e r&b envereda por caminhos comerciais de apelo fácil, D'Angelo e alguns dos seus descendentes inspiram-se nas fontes mais seguras da música negra e através de novas técnicas de produção e intrincados arranjos perseguem novos desígnios para a música soul. As vozes quentes adaptáveis aos mais variados registos, a mistura da instrumentação convencional com novos métodos de trabalho, a absorção de estímulos provenientes do hip-hop, blues e jazz e o tornear dos lugares-comuns do género em favor de letras mais metafóricas tem gerado um novo entusiasmo em torno da música soul. O lançamento este ano do fulgurante segundo álbum de D'Angelo e a revelação de uma nova estrela em ascensão, Kelis, são a prova desse estado de graça, mas os discos editados nos últimos anos por Maxwell, Erykah Badu, Adriana Evans ou Macy Gray já vinham constituindo sintomas seguros de que no campo da música soul é, afinal, possível ser clássico e original ao mesmo tempo sem cair em maneirismos fáceis.Tal como D'Angelo, também Maxwell é um multi-instrumentista de talento e um cantor versátil. Mas, para além dessas duas qualidades, possui uma outra: é capaz de escrever canções sobre os mais versados temas da mais insípida música soul - o amor e as promessas de sexo - sem cair nos clichés do género. No seu primeiro álbum, "Urban Hang Suite" de 1996, descrevia a forma como se havia apaixonado por uma rapariga e como não havia sido correspondido. Dito assim, parece o tema mais trivial do mundo, mas a partir desse pretexto simples Maxwell é capaz de desencadear reflexões maduras sobre o desejo, o amor e o sexo de uma forma que apenas tem paralelo em D'Angelo ou Prince. Nascido em Brooklyn, em Nova Iorque, Maxwell teve o engenho de se fazer acompanhar, nesse primeiro passo, de músicos dotados que o haviam influenciado, como Leon Ware (habitual colaborador de Marvin Gaye) ou o guitarrista Wah Wah Watson. Mas a edição posterior de discos como "Unplugged" ou "Embrya" mostraram que o talento de Maxwell não se limitava à escolha de boas companhias. É talvez a mais importante voz da música soul a surgir nos anos mais recentes. Quando apareceu, em 1997, com o álbum "Baduizm", Erykah Badu despontou paixões mesmo em quem não gostava especialmente de música soul. As razões não são difíceis de enumerar: uma incorporação inteligente de influências das mais clássica música negra (Stevie Wonder, Al Green, Minnie Riperton, Marvin Gaye e Chaka Khan), uma voz única que não deve nada a Billie Holiday e uma música melódica, atmosférica e elegante que mistura soul, funk, jazz e hip-hop. Com "Baduizm", a jovem cantora de 25 anos, nascida em Dallas, deixou para trás em definitivo o seu passado como cantora profissional de estúdio e afirmou-se como a mais importante voz da música soul contemporânea. O lançamento, em 1998, do álbum ao vivo "Live" e a ansiedade com que o seu novo longa-duração é esperado são mais uma prova desse estatuto. As gravações do novo álbum decorreram num ambiente de grande secretismo, mas em Abril todas as portas vão ser abertas para ser desvendado mais um capítulo da "nu-soul". Adriana Evans estreou-se exactamente na mesma altura que Erykah Badu, mas nunca conseguiu a projecção da sua "rival". Na sua música é muito mais visível a influência do hip-hop e do jazz no que da Erykah Badu, mas a uni-las existe o mesmo respeito pelas raízes da música negra e a mesma vontade de lhe insuflar novas energias. Descoberta depois de ter trabalhado com Dred Scott no single "Check the Vibe", Adriana Evans estava predestinada para ocupar um lugar no mundo da música. O seu padrinho é Pharoah Sanders, mas foi através da mãe que acordou para a música negra. A mãe, Mary Stallings, cantou com grandes figuras da música jazz como Cal Tjader, Count Basie e Dizzy Gillespie e nas digressões levava sempre a filha consigo. Não surpreende por isso que a voz de Adriana Evans respire uma grande sensibilidade jazz. Para além do jazz, as duas outras grandes paixões da jovem cantora e compositora americana são a soul e o hip-hop. Foi a partir da energia subtil do hip-hop, dos novelos vocais jazzísticos e dos arranjos soul que nasceu o seu homónimo álbum de estreia lançado em 1997. O sucesso planetário do álbum "On How Life Is" de Macy Gray verificado o ano passado é um exemplo eloquente de como as novas vozes da música soul têm conseguido aliar a qualidade com o êxito. Uma voz estranha (alguém já a descreveu como um cruzamento entre James Brown e a Minnie do Rato Mickey), marcas de hip-hop e a influência dos clássicos da soul (de Al Green a Stevie Wonder) compõem a base do sucesso. Mas a vida não foi fácil para Macy Gray. Foi em Caton, nos Estados Unidos, que Natalie McIntyre (o nome artístico viria depois) se iniciou a ouvir música soul, Prince e hip-hop. Em meados dos anos 90 obteve um contrato de gravação com a Atlantic e chegou a deixar um álbum na prateleira, mas o executivo que a tinha contratado saiu da editora. Já havia abandonado a ideia de se tornar cantora, quando, em 1997, o vice-presidente da Zomba Music Publishing, Jeff Blue, ouviu o referido disco nunca lançado pela Atlantic e convenceu Macy Gray a regressar ao mundo da música. A voz de Macy, os seus instintos hip-hop e sua visão sobre a música soul fizeram o resto. É a mais recente revelação da música r&b. Com apenas 19 anos, a nova-iorquina Kelis está a causar furor com o lançamento recente do álbum "Kaleidoscope". Em vez de sofisticação, Kelis, na companhia dos produtores Chad Hugo e Pharell, optou por uma sonoridade minimal e rude que vai beber à soul e ao hip-hop e o resultado é um disco fresco e diverso, sem deixar de ser clássico. Os mais atentos seguidores do hip-hop reconhecerão a sua voz do tema "Caught Out There" dos Neptunes, mas foi o lançamento agora realizado do seu álbum de estreia que despertou a atenção da maioria sobre uma voz brilhante e uma música hip-hop soul de esqueleto simples - uma batida, uma linha de baixo e alguns sons sintetizados - mas de contornos precisos. O crescimento do mercado r&b nos últimos anos provocou a procura de vocabulários próprios por parte de quem queria fugir à vulgaridade reinante. A ascensão de Kelis é mais uma prova de que a cena soul nos Estados Unidos é cada vez mais diversa, o que contraria a padronização de há dez anos atrás, quando eram Anita Baker ou Whitney Houston que davam cartas.