Todo o arrependimento da Igreja
É o documento mais prometido para a celebração deste ano do Jubileu. É um desejo pessoal do Papa, contra ventos e cardeais. "Memória e Reconciliação" explica as razões pelas quais a Igreja Católica deve arrepender-se e pedir perdão pelos erros do passado e do presente. O PÚBLICO sintetiza o documento que ontem foi apresentado oficialmente no Vaticano.
Um dos textos mais aguardados dos últimos anos no Vaticano, e porventura um dos documentos mais emblemáticos do pontificado de João Paulo II foi ontem apresentado na Santa Sé. "Memória e Reconciliação - a Igreja e os erros do passado" justifica, perante os críticos da ideia, a razão de ser do pedido de perdão histórico da Igreja e aponta as quatro áreas mais importantes de pecado: a divisão dos cristãos, o uso da violência ao serviço da verdade, os cristãos e os judeus e a responsabilidade dos católicos nos males contemporâneos. Este é um texto com parto difícil. Em 1994, o Papa Wojtyla apresentou ao colégio dos cardeais um memorando propondo um "olhar atento para a história do segundo milénio" da Igreja Católica e reconhecendo nele "os erros cometidos por homens que dela fizeram parte e que, em certo sentido, agiram em nome dela". Alguns cardeais temiam que a ideia daria azo a que eventuais detractores da Igreja confirmassem preconceitos contra ela. João Paulo II decidiu avançar - apesar de tudo, tinha com ele um importante sector do colégio cardinalício. Em Novembro de 1994, na encíclica "Tertio Millenio Adveniente", que anunciava a celebração do Jubileu do ano 2000, o Papa insistiu na ideia. Finalmente, aí está o texto, que ontem foi apresentado, com a assinatura da Comissão Teológica Internacional (CTI), pelos cardeais Roger Etchegaray e Joseph Ratzinger, presidentes do Comité para o Jubileu e da Congregação para a Doutrina da Fé, respectivamente. Não sem que antes, a semana passada, se tenha registado mais uma pequena história: em França, o documento foi apresentado publicamente por um dos membros da CTI, antes da sua divulgação oficial no Vaticano. E no próximo domingo, ao presidir à "jornada de arrependimento", João Paulo II não deixará de se lhe referir, dando-lhe força substantiva.O texto começa por referir-se aos sucessivos pedidos de perdão do Papa. João Paulo II já se referiu a 21 temas diferentes como merecedores da penitência católica, assim recenseados por Luigi Accattoli ("Quando o Papa pede perdão", ed. Paulinas): cruzadas, ditaduras, divisão entre igrejas, mulheres, judeus, Galileu, guerra e paz, guerras religiosas, os protestantes Hus, Calvino e Zuínglio, povos indígenas, injustiças, Inquisição, integralismo, Islão, Lutero, Mafia, racismo, Ruanda, Cisma do Oriente, história do papado, tráfico de negros. "A Igreja é convidada a tomar a cargo, com uma consciência mais viva, o pecado dos seus filhos", escreve a comissão. Distinguindo, ainda assim, a responsabilidade "a atribuir aos membros da Igreja enquanto crentes, daquela que se refere aos séculos de 'cristandade', ou a estruturas de poder em que o temporal e o espiritual estavam estreitamente ligados". Para esse exercício, são necessários dois passos prévios: analisar a verdade histórica dos factos e comprovar se eles são contrários ao evangelho. O documento recorda depois os argumentos dos que criticavam a ideia do perdão histórico. Alguns perguntam "como transmitir o amor da Igreja às jovens gerações, se esta Igreja é imputada de crimes". Outros observam que o reconhecimento dos erros é "unilateral", e que os detractores da Igreja podem usá-lo para confirmar preconceitos contra ela. Ainda há quem pense que as gerações actuais não podem ser culpadas pelo que não consentiram, mas apenas assumir a responsabilidade de corrigir injustiças. Finalmente, também há outros a defender que a Igreja poderá purificar a sua memória apenas "tomando parte no trabalho crítico" sobre o passado que se faz nas sociedades contemporâneas. O pedido de perdão, justifica no entanto a CTI, "supõe que se admita a responsabilidade de uma falta cometida contra outros". Uma responsabilidade de tipo objectivo, que o texto explica numa das suas formulações centrais: "Em certas situações, o peso sobre a consciência pode ser tão pesado que constitui uma espécie de memória moral e religiosa do mal perpretado; por natureza, trata-se de uma memória colectiva." "É então que se torna possível falar de uma responsabilidade comum objectiva. Libertamo-nos do peso de uma tal responsabilidade implorando antes de tudo o perdão de Deus pelas faltas do passado, e portanto, quando é o caso, através da 'purificação da memória' que culmina no perdão recíproco dos pecados e das ofensas no tempo presente. Purificar a memória significa eliminar da consciência pessoal e colectiva todas as formas de ressentimento e de violência deixadas pela herança do passado, sobre a base de um novo e rigoroso julgamento histórico-teológico, ele mesmo fundamento de um comportamento moral renovado." Aqui chegado, o texto está em condições de enfrentar as quatro grandes áreas propostas à reflexão. A primeira é a divisão dos cristãos, "objecto de escândalo" para o mundo, que deve ser ultrapassada pela "obediência ao imperativo da unidade". O uso da violência para a propagação da fé é o segundo tema e nele cabem factos como as cruzadas, a Inquisição ou a evangelização da América. "Um dos domínios que exige um exame de consciência particular é o da relação entre cristãos e judeus", cujo balanço é sobretudo "negativo". A hostilidade e desconfiança de muitos cristãos criaram um caldo de cultura que facilitou, entre outras coisas, o antisemitismo e a Shoah, apesar de estes serem ideologias pagãs e que desprezavam a fé. Finalmente, nem só no passado a Igreja errou. Até que ponto, pergunta o documento, são os cristãos corresponsáveis pelo "eclipse de Deus" que se vive actualmente. Ou por formas de "ateísmo teórico e prático" revelados por factores como a "indiferença religiosa, ausência difusa do sentido da transcendência da vida humana, clima de secularismo e relativismo ético, negação do direito à vida da criança que está para nascer (...) e uma larga indiferença aos gritos dos pobres"? "Os cristãos receberam a responsabilidade de viver de modo a manifestar aos outros o verdadeiro rosto do Deus vivo", conclui o texto. "São chamados a irradiar no mundo a verdade de que 'Deus é amor'".