"Queremos contar-vos como o som é belo"

A tradição oral é "um saber antigo" onde a voz se utiliza "como testemunho de vida." Assim o deseja a compositora e etnomusicóloga italiana Giovanna Marini, na recriação da Cantata "Si bemol", com o seu quarteto de vozes femininas. No Porto, em Viseu e em Lisboa.

A cantata "Si Bemol", de Giovanna Marini, nasceu de um grande desejo. "O desejo de contar a beleza do reencontro com o som." Do imenso "prazer de manipular o som com a voz e do encontro com a voz dos outros." À semelhança dos anteriores trabalhos desta compositora e etnomusicóloga italiana, a nova obra é uma recriação da tradição oral, onde os inumeráveis matizes vocais são companheiros "das angústias e das alegrias da vida." Pela segunda vez em Portugal, Giovanna Marini e o seu quarteto de vozes femininas apresenta-se hoje e amanhã, no Teatro Rivoli, no Porto. Nos dias 11 e 12 estará em Viseu, no Teatro Viriato e nos dias 14 e 15, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa.Giovanna Marini tocava guitarra numa festa que reunia a "inteligentzia" romana, quando um jovem sorridente se aproximou e lhe pediu: "Deixe Bach e cante-nos uma canção". O jovem era nada mais nada menos do que Pier Paolo Pasolini. Corria o ano de 1958 e Giovanna tinha 21 anos. O poeta e realizador italiano foi uma das personalidades que a fez despertar para as riquezas da música tradicional e quem a pôs em contacto com os membros do Nuovo Canzionero Italiano, que recolhiam por toda a Itália testemunhos sonoros da cultura popular. Rebelde por natureza - aos doze anos fugiu de um colégio de freiras -, Giovanna abandonou a sua carreira na música clássica e começou a compôr baladas que cantava acompanhada pela guitarra. Começou também a pesquisar a música genuína dos camponeses italianos e em especial as suas formas de interpretação. Esta serviu-lhe de inspiração para as suas próprias obras, que procuram recriar a tradição oral, "converter-se em música viva". Da sua admiração por Pasolini nasceu a cantata "Partenze, 20 anos depois da morte de Pier Paolo Pasolini", que apresentou em Lisboa e no Porto, em Janeiro de 1999.Nessa ocasião Giovanna Marini, que também escreve habitualmente para teatro e cinema, contou ao PUBLICO algumas das suas aspirações. A sua música "pretende retratar os momentos de cultura que ainda não foram contaminados pela sociedade do bem-estar, a música que permanece nas mãos daqueles que vivem a vida de um modo diverso, refutando o nivelamento da indústria cultural." As suas pesquisas realizam-se sobretudo no Sul de Itália - muitas vezes na companhia dos seus alunos da Universidade de Paris VIII e da Escola de Testaccio de Roma -, onde existe uma tradição muito rica, com influências árabes, andaluzas, orientais, sicilianas e até gregas e egípcias. "No Norte o sistema capitalista chegou muito depressa o que fez perder mais rapidamente o contacto com a natureza, com as culturas populares. A gente do Sul acredita ainda em certas formas de medicina ligadas aos rituais, à terra. São coisas que agora estão na moda, mas para essas pessoas trata-se de uma vivência autêntica." Fragmentos destas recolhas são depois intercaladas com as suas próprias composições, onde as fronteiras entre a música étnica e a música contemporânea se diluem.Para interpretar música com estas características, Giovanna uniu a sua arte à de três cantoras com percursos muito diferentes: Patrizia Bovi, especialista em música medieval e elemento do agrupamento Micrologus; Francesca Breschi, actriz e cantora com ampla experiência de direcção coral e Patrizia Nasini, que faz sobretudo música contemporânea.A recriação da oralidade, "um saber antigo onde a voz é utilizada como testemunho de vida", exige um trabalho especial. Giovanna Marini escreve primeiro o texto e a música, depois decora o que escreveu com as suas companheiras. "À medida que vamos interiorizando a música, esta vai-se tornando mais humana, começa a fazer parte de nós. É aí que surgem todas aquelas coisas que fazem o estilo da música oral, modificações de cor, de timbre, de altura. Cantamos muito em afinação não temperada, enquanto os cantores clássicos usam a mesma escala que o piano. É necessário unir o conhecimento da música que se estuda no conservatório com o conhecimento que têm os cantores populares, que também é muito profundo. Mas não é música de vanguarda. Não é música artificial. É preciso que a música faça parte da nossa vida."Foi esta abertura às diferentes manifestações musicais que levou Giovanna Marini a criar a Escola Populare di Musica di Testaccio em 1974. Uma escola muito diferente do conservatório, onde os programas contemplam não só a música clássica, mas também o jazz e a música étnica. Nela se pode estudar guitarra clássica, mas também guitarra eléctrica ou country, canto lírico, canto medieval ou renascentista ou jazz, cantar na afinação temperada e na afinação natural... Mas os objectivos principais são comuns: o prazer da música, a beleza do som, a música como testemunho de vida.

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