Sons de todas as cores
Do Brasil, Martinho da Vila trouxe o samba. E em Portugal juntou-lhe o fado, mais a coladera, o semba, a marrabenta, ritmos de África que imaginou numa alquimia de ritmos. Chamou-lhe "Lusofonia" e o Coliseu de Lisboa encheu-se anteontem para ouvir o resultado: uma festa com sons de todas as cores e a marca inconfundível do mestre sambista.
Martinho da Vila tinha prometido uma noite de festa e cumpriu. Anteontem, no Coliseu de Lisboa, perante uma sala superlotada que ansiava por dançar e bater palmas mesmo antes de se ouvir o primeiro som (o atraso de quinze minutos no arranque do espectáculo foi preenchido por assobiadelas, pateadas monumentais e exibições nervosas de chamas de isqueiros), ele soube resistir à facilidade e marcou o ritmo do espectáculo com sabedoria, provando, mais uma vez, que num palco não cede a liderança a ninguém."Eu vou fazer de conta que estou na casa de vocês", disse Martinho, sentando-se a uma mesa colocada estrategicamente no centro do palco, copo sobre a toalha, como se de repente a enorme sala se estreitasse nas paredes de um botequim. E assim foi, toda a noite, sentando-se e levantando-se, abraçando músicos e cantando com eles e alimentando a chama do espectáculo sem nunca desiludir o público nem trair as suas intenções.Mas primeiro teve de lutar com uma resistência quase hostil. Quando surgiu no palco, às 22h15, vinha sozinho, todo de branco, iluminado contra o pano que ocultava os músicos. E quando todos esperavam a primeira descarga de sambas reconhecíveis, desfiou, "a capella", um tema que ainda ninguém conhecia: "Eu gostaria de exaltar em bom tupi/ as belezas do meu país..." ("Lusofonia"). Cantou-o como se falasse. Ou como se essa fala-canto fosse a explicação única de estar ali. Depois, pegou num pandeiro e, ainda sozinho, encheu a voz e a sala (agora já mais cúmplice) com o samba-enredo "Aquarela brasileira", de Silas de Oliveira. Como o Coliseu passou na prova, deu-lhe o resto: o pano abriu-se e a banda de Martinho (nove músicos e duas coristas, uma delas a fogosa Juliana, filha do cantor) iniciou com ele uma breve viagem pelo reportório sambista que mais marcou a sua carreira: entre outros, "Madalena do Jucu", "Quem é do mar não enjoa", "Pequeno burguês", "Pra quê dinheiro" e o inevitável "Canta, canta minha gente". Como ali a gente já cantava, e bem, Martinho sossegou. E, sentado à mesa, arriscou um fado: "Lisboa, menina e moça", por ele transformado em samba-canção. O pior foi quando quis cantar "O homem das castanhas", de Ary dos Santos: começou, mas, à medida que procurava a letra nos papéis que tinha na mesa, obrigou-se a trautear porque a letra não aparecia. Qualquer outro teria parado a música e dito uma graça qualquer. Ele não. Pôs os papéis de lado e com a sua inquebrável boa disposição chegou-se à beira do palco e enfrentou o público com o que sabia, repetindo e obrigando a sala a repetir, o refrão até uma apoteótica tempestade de aplausos.Veio depois a prometida incursão lusófona, sempre com um toque dos sons do Brasil natal de Martinho. Primeiro, "Viva Timor Leste", marcha-rancho em sentida homenagem ao "novo país irmão" da lusofonia. E veio Luís Represas, para cantar com ele, já que gravaram juntos a canção no novo disco de Martinho que não tarda a chegar por aí. Seguiu-se "Dança ma mi criola", agora num virar de agulha para Cabo Verde, e veio Celina Pereira, para "coladeirar" com ele ("Martinho inventou esse verbo", disse Celina, divertida) uma saborosa "Nutridinha", num excelente dueto. Martinho achou por bem colar-lhe dois temas com a marca de Pixinguinha, "Gavião calçudo" e "Patrão prenda seu gado", pretexto para a entrada (eram já 23h15) dos Tabanka Djaz, grupo guineense que Martinho recrutou também para o seu disco. Tocaram dois temas seus e, depois, foram literalmente varridos por um furacão chamado Astra Harris para cantar (já com Martinho) "Vamos cultivar". A cantora moçambicana abalou o Coliseu com a sua voz e a ajuda de duas dançarinas africanas (que foram trocando vestes consoante os sons que ali as chamavam) e levou o ritmo até quase aos limites da resistência física. Seguiu-se "Carambola", de São Tomé e Príncipe, embrenhando-se depois os Tabanka Djaz e Martinho na malícia das guineenses "Bacu" e "Tira mão da minha xuxa". As dançarinas voltam e, para não arrefecer a temperatura, entrou o jovem angolano Don Kikas, também ele uma máquina de palco, a partilhar com Martinho as glórias do frenético "Hino da madrugada".Às 23h50, o palco esvazia-se e o pano desce. A plateia berra incansável por "Mulheres", um dos temas de Martinho que na última década mais marcas deixaram. E ele fez-lhes a vontade. Voltou, com a banda, e além de "Mulheres", cantou "Minha e tua" e depois de nova insistência do público ("Eles não querem ir embora..."), rematou com "Devagar, devagarinho", que fez voltar ao palco, agora todos juntos, Tabanka Djaz, Luís Represas (a percutir um pandeiro), Celina Pereira, Don Kikas e, já no final, Astra Harris que, apesar de já vir no fim da canção ainda "aterrou" a tempo de pespegar um beijo em Martinho.Depois foram saindo todos, "devagar, devagarinho", envoltos em aplausos e deixando no ar um sabor de festa. Com sons de todas as cores numa noite da cor de todos os sons.