Piores dias virão
Um menina nasceu numa árvore, o refúgio de moçambicanos que fogem às águas. Pendurados em galhos e em telhados, aguardam desesperados pela ajuda humanitária que tarda em chegar. As águas vão voltar a subir, as previsões até domingo assustam. Chovem pedidos de auxílio, os sobreviventes não têm que comer, receiam-se as epidemias. A primeira ajuda portuguesa chega hoje a Maputo. A comunidade internacional começa a mexer-se. Devagar, demasiado devagar. Não se sabe até quando as árvores e os tectos aguentarão 73 mil pessoas que aí se empoleiram há quatro dias. Ninguém conta os cadáveres, mas calculam-se em cem mil os habitantes desalojados. Em Moçambique todas as horas se atrasam na espera da salvação que vem do ar: os helicópteros.
As águas sobem depressa e ajuda humanitária chega devagar. Vinte e quatro horas é muito tempo: o tempo de morte ou de vida para quem se segura há mais de três, quatro dias, no topo dos telhados ou nos ramos das árvores, como se fossem pássaros desesperados. As agências humanitárias perguntam: porquê? Porque é que a ajuda demora tanto tempo, se as cheias começaram há quase um mês e as primeiras imagens televisivas do desespero dos moçambicanos passam há quatro dias? A equipa de salvamento sul-africana que desde domingo já resgatou das torrentes oito mil pessoas pergunta: porquê? Porque é que têm estado quase sozinhos com a sua coragem a salvar homens, crianças e mulheres? Joaquim Chissano, Presidente de Moçambique, já não pergunta. Triste, usa da sua diplomacia para dizer que quem pede não pode reclamar: "A ajuda está a chegar lentamente e em pequenas quantidades."E, se o presente é dramático, o futuro é assustador. Não se trata sequer de pensar como é que o país, um dos mais pobres do mundo, se vai levantar da catástrofe, da desolação que a maior cheia de que há memória o atingiu. Nem tão-pouco se trata de ver como é que se evitam as doenças que já ameaçam tornar-se epidemia, como a malária e a cólera. Trata-se de pensar as próximas 24, 42, 72 horas. Estão ainda cem mil pessoas encurraladas pela água, à mercê da ajuda de helicópteros. As previsões para Moçambique são as piores: as inundações vão continuar. Os avisos surgiram ontem em várias vozes. Desde os serviços meteorológicos moçambicanos à Administração de Água todos dizem que novas cheias afectarão o centro e o Sul de Moçambique nos próximos dias. O pesadelo ameaça continuar até domingo. Membros de agências humanitárias falam de um novo ciclone que se aproxima da costa: pode ou não assolar em Moçambique. Mas há um perigo nada menor: os países vizinhos, também eles afectados pelas cheias, vão abrir as comportas. O Botswana já avisou, a África do Sul não demora nada e o Zimbabwe em breve o fará. Os rios Limpopo - cujas ondas estão a devastar grandes zonas em Chokwe, província de Gaza, e que desviou o seu curso, estando a entrar para outras áreas - e o Zambeze encherão os seus caudais, mais terras serão alagadas. "Dos quinze rios do país, nove são internacionais", explicava ontem o ministro dos Negócios Estrangeiros moçambicano, Leonardo Simão, à Reuters. Chissano também alertou para a possibilidade de as inundações chegarem à Zambézia e ao Norte de Sofala, nas margens do rio Zambeze, uma vez que as comportas das barragens a montante, na Zâmbia e no Zimbabwe, onde continua a chover com grande intensidade, "vão ser abertas dentro de dias". Ao longo do extenso vale do Limpopo, na província de Gaza, a altura das águas não dera ontem sinais de ir baixar. Estima-se em mais de 73 mil o número de pessoas ainda penduradas em árvores e cercadas por águas com muitos metros de altura, prevendo-se que as cheias tenham desalojado pelo menos 1 milhão e meio de habitantes (Moçambique tem 17 milhões). E estima-se que 3400 mulheres dêem à luz nos próximos dias, como sucedeu ontem com Sofia Pedro, no cimo de uma árvore (ver outro texto). Até ontem, apenas 12 helicópteros (nove da África do Sul, dois do Malawi e um da França; o Reino Unido vai enviar mais cinco, bem como dois aviões) estavam envolvidos no salvamento das populações em Gaza e no centro do país, tal como em Nova Mambone e Machanga, onde a situação é dramática. "Há muito desespero, as pessoas choram e lutam para entrar nos helicópteros", disse ao PÚBLICO Vusi Mulhanga, da força aérea sul-africana. Anteontem, perto do Chokwe (Gaza), a sua equipa resgatou cerca de 800 pessoas.Mortos? Não é este o momento para contar cadáveres. Os números variam entre os 200 e os 350. Mas ninguém tem dúvidas, desde o Governo até às Organizações Não Governamentais (ONG), qualquer contagem peca por defeito. Há vilas e cidades completamente submersas; relatos de pessoas que viram outras serem arrastadas pelas águas, residentes que morreram nas casas, nos carros, nas terras. O PÚBLICO percorreu Xai-Xai (Gaza) de barco, acompanhando sul-africanos em operações de ajuda. Grande parte da cidade continua submersa, havendo prédios de dois pisos de que só se vêem os telhados. Muitas pessoas permanecem nos terraços. À passagem do barco, sobrelotado de sobreviventes, ouviram-se gritos e choros, pedidos de socorro. Alguns sobreviventes contaram que há dias que não comiam nem bebiam. Num terraço no centro de Xai-Xai, um homem morreu no meio de uma multidão desesperada, que empurrou o corpo para as águas. Na ponte sobre o Limpopo, segundo o proprietário de um restaurante situado nas proximidades, encontram-se perto de 400 pessoas e o nível das águas está a apenas 20, 30 centímetros do tabuleiro. Um padre católico contou ao PÚBLICO que, no centro de saúde de Chokwe, os doentes e as freiras estão empoleirados num contentor que corre o risco de ser arrastado pelas águas. Mais para o interior, há pessoas a morrer de fome. Rodeados de água na mata densa, sem mantimentos, muitos desfalecem e são levados pelas correntes em direcção ao Índico. O criador de gado Eduardo Capela viu 500 das suas cabeças de gado serem arrastadas pelas águas. Há corpos humanos e gado morto a flutuar. Os milhares de pessoas salvas debatem-se com carências alimentares, de vestuário e de medicamentos, uma vez que os meios de transporte disponíveis estão concentrados no salvamento. Um deputado que conseguiu chegar à Beira disse ontem à rádio de Moçambique que em Machanga, distrito com 40 mil habitantes, as pessoas andam pelas matas à procura de animais, como aves, cabritos e peixes mortos.Faltam tendas, mantas, água potável... "As pessoas chegam febris, como muita fome e sede, vamos precisar de mais mantimentos", alerta Júlia Siquice, da Cruz Vermelha de Moçambique em Xai-Xai. Vastas regiões das províncias de Gaza e de Inhambane continuam isoladas do resto do país, sem meios alternativos de abastecimento.Uma mulher pagou 930 contos a uma companhia de aviação privada para a salvar, bem como a um filho de seis anos e uma amiga, contava ontem a Reuters. Para trás deixou vizinhos pendurados em árvores, alguns caíram para a morte, nas águas. "Foram simplesmente levados pelas correntes. Mais de cem pessoas morreram na minha vizinhança, muitos com fome e sede. É triste, muito triste, que não haja ninguém para ajudar a nossa gente", chorou Helena Maria, 42 anos, mãe de três filhos. A ajuda de emergência e de salvamento às vítimas das cheias em Moçambique tem chegado ao país, mas, segundo o Chissano, que ontem se deslocou às zonas afectadas, muito lentamente. Pouco antes de embarcar declarou, com ar visivelmente entristecido: "A ajuda da comunidade internacional está a chegar muito lentamente." "Muito tarde?", perguntaram-lhe. "Não muito tarde, mas lentamente. Nós fizemos o apelo para helicópteros há muito tempo e apenas tivemos a resposta de três países." Desapontado? "Quem pede ajuda não pode ficar desapontado. Mas precisamos de mais helicópteros e barcos." Especialistas de agências explicam a lentidão com a resposta inadequada ao rápido agravamento da crise, o custo elevado do transporte de meios militares para os sítios e a indiferença internacional sobre um pobre e longínquo país africano. Eileen Maybin da Christian Aid, em Londres, não entende a delonga. A União Europeia tem demorado a responder. E John O'Shea, director da agência irlandesa GOAL considera "patética" a ajuda internacional a Moçambique.Ontem chegou a Maputo um enorme avião americano com comida e medicamentos e Washington enviou dois helicópteros tendo aumentado o valor da sua ajuda de 1,7 para 11 milhões de dólares; o Canadá oferece 1,6 milhões. A Alemanha, para além dos 1,5 milhões de dólares, vai enviar 25 helicópteros e aviões mais pequenos; o Reino Unido prometeu, além dos helicópteros, 77 barcos de borracha, 39 jangadas salva-vidas e veículos de emergência.Chegará? O Programa Alimentar Mundial prevê que pelo menos 600 mil pessoas necessitem de comida durante três meses, o que custará mais de 25 milhões de dólares. O Grupo da Dívida Moçambicana (associação composta por sindicalistas e ONG) e o Governo moçambicano pediram o perdão da dívida externa. Até ao momento apenas o Reino Unido aceitou o repto.*com Carlos Mhula, em Xai-Xai