Ninguém sai daqui vivo
Patrick Bateman, o yuppie psicopata de Wall Street que Bret Easton Ellis inventou em "American Psycho", chegou ontem a Berlim num filme de Mary Harron com Christian Bale. E ontem assistiu-se também à biografia do comediante dos anos 70 Andy Kaufman, que Milos Forman transformou numa performance com Jim Carrey. Em ambos os filmes ninguém sai vivo.
Ele é perfeito e adorável, diz o cartaz. Mas quando se olha ao espelho para tirar a máscara de beleza, Patrick Bateman não consegue ver nada. Vê carne e pele, mas não encontra mais nada, porque não há nada ali, nenhuma emoção, para além da inveja e do desprezo. Perfeito e adorável, Patrick Bateman também é a morte.Andy Kaufman também não consegue encontrar nada dentro dele a que possa chamar "eu". Vêmo-lo desaparecer, de olhos esbugalhados, para dentro das personagens que leva para cima dos palcos e que veste na sua vida diária. Como ele dizia: "Tenho alguma dificuldade em sentir que a realidade existe." Quando morreu de cancro, nos anos 80, ninguém acreditou. Era como se não se tivesse passado nada, era igual.Patrick Bateman, o yuppie psicopata de Wall Street que Bret Easton Ellis inventou em "American Psycho", chegou ontem a Berlim num filme de Mary Harron com Christian Bale. E ontem assistiu-se também à biografia do comediante dos anos 70 Andy Kaufman, que Milos Forman transformou numa performance com Jim Carrey. Em ambos os filmes ninguém sai vivo."Sim, quando me interessei pelo papel, recebi uma série de telefonemas de pessoas amigas a dizerem-me que estava à beira de um suicídio de carreira", contava o actor Christian Bale, que veste a pele de Patrick Bateman, em "American Psycho".Depois da polémica à volta da obra de Bret Easton Ellis, quando foi publicada em 1991 (ameaças de morte ao escritor, acusações de misoginia por parte de grupos feministas), o projecto de adaptação ao cinema de Mary Harron esteve também ameaçado quando, à beira da rodagem começar em Toronto, um exemplar do livro foi encontrado no quarto de um "serial killer" e logo um grupo de Canadianos Preocupados com a Violência tentou impedir a rodagem. Portanto, está toda a gente de olhos virados para "American Psycho", que, ameaçou a comissão americana de classificação de espectáculos, se algumas cenas não forem cortadas só poderá ser distribuído nos Estados Unidos com a classificação NC17, o que amputa as suas potencialidades comerciais.Mas como notava, e bem, Christian Bale, "a maior parte das pessoas que protestou contra o livro nem sequer o tinha lido, e todos os protestos em relação ao filme eram infundados porque as pessoas nem sequer o tinham visto". Depois de visto em Berlim, onde passou fora de competição, Bale tem razão para estar "incrivelmente orgulhoso" (sobretudo porque a personagem quase lhe fugiu das mãos quando Leonardo DiCaprio mostrou interesse no projecto) e os espectadores, naturalmente, incrivelmente surpreendidos pela forma como Mary Harron "leu" o brutal livro de Ellis: como uma comédia negra, e com toques do fantástico de série B da obra de um Jacques Tourneur, por exemplo.O genérico é uma superfície branca imaculada, sobre a qual vão caindo o que parecem ser flocos de neve, depois folhas e, mais tarde, aquilo que realmente são: gotas de sangue. A superfície transforma-se em toalha, o sangue transforma-se em doce de amora que é esguichado para compor os pratos, muito "cuisine française", e é sobre esta mesa que um grupo de "yuppies" de Wall Street se dedica a duelos para concluir qual deles é que tem o mais bonito "business card".Um deles chama-se Patrick Bateman, e mata homens, mulheres e animais, guarda os restos no frigorífico e come alguns pedaços. O que enfurece Bateman é alguém preferir o "business card" de outra pessoa e não o dele, ou achar o apartamento dele muito impressionante mas algo incómodo pelo excesso de "design" - estamos nos anos 80. Antes de matar, Bateman dedica sempre alguns minutos à educação das vítimas para lhes explicar as virtudes contidas em álbuns como "Duke" dos Genesis, em toda a obra de Huey Lewis and the News, ele, que sabe de cor os hits de Whitney Houston. E quando está na cama com duas prostitutas (a cena de que o filme terá de se desembaraçar para não ser classificado "para adultos" no mercado americano) só consegue olhar para o espelho, para os seus músculos. "Vejo-o como um mau actor, foi essa a minha estratégia para a personagem", contou Bale. "Nada é inato em Patrick Bateman, está sempre a interpretar e sempre demasiado consciente do seu papel, coisa que acontece quando estamos a dar uma má interpretação". A dele, Bale, que está em todas as cenas do filme, é estarrecedora. Tem algo de marioneta, alguma coisa de filme mudo, e é nele que Mary Harron encontra o principal "gancho" para conduzir o filme para os terrenos da comédia e da farsa. A realizadora não só "limpou" o filme de todo o "gore" do livro - a maior parte das atrocidades não são vistas, são contadas como se fossem um diálogo cómico - como, nessa coerente estratégia de concisão, encarou a reconstituição de época, os anos 80, como o rasto gelado de um sonho. E, por aí, explicita o que é apenas sugerido no livro: que tudo se passou na cabeça do "yuppie". "And it's a dream", cantam os Cure, e os olhos de Patrick Bateman estão abertos de horror, porque ninguém acredita nas suas atrocidades e ele já não consegue ultrapassar-se.Milos Forman viu-o pela primeira, e única vez, no palco de um bar de Los Angeles, em 1972. "Apareceu um tipo com um livro debaixo do braço, a dizer que ia lê-lo para nós, e durante 10 minutos começou a falar do autor, a explicar o livro, tintim por tintim, e nós à espera da 'punchline', da piada final. Mas ela não vinha. E depois veio: Andy Kaufman começou a ler o livro todo. Senti-me embaraçado mas no fim eu e toda a sala rebolávamo-nos a rir. Era intrigante." Pelo menos era um livro de contos, porque uma vez leu "O Grande Gatsby", de Fitzgerald, e os que não debandaram, adormeceram. "O que era importante para ele é que houvesse uma reacção da audiência, quer de apoio quer de rejeição. Ele não se considerava um comediante. Ele dizia que não sabia o que era uma piada. Considerava-se um artista das canções e da dança.""Man on the Moon" é então o "biopic" desse comediante dos anos 70 que alienava as suas audiências, esticando até aos limites do errático o conceito de "stand up comedy".Tornou-se uma vedeta através do sucesso da série "Taxi" - que ele fez para conseguir poder, porque detestava "sitcoms", considerava-as a forma mais baixa de "entertainment" -, e esse sucesso ele tratou logo de estilhaçar quando se tornou o comediante mais odiado dos americanos, chegando o público ao ponto de votar para o despedirem de um programa de televisão. "Sou condicionado pela vida que levei numa sociedade totalitária", diz Forman, checo naturalizado americano. "Se calhar é por isso que me atraiem as pessoas que se revoltam. Se calhar porque sou cobarde, não tenho outra alternativa a não ser fazer filmes sobre essas pessoas."Sendo um "biopic", "Man on the Moon" confronta-se com um dilema: como filmar a vida de uma personagem que não tinha vida, ou que existia escondendo-se nas vidas das personagens que criava no palco? "Falámos com as pessoas que lhe eram mais íntimas, e a resposta foi sempre a mesma: não havia um verdadeiro Andy Kaufman por trás das personagens que ele criava. A vida para ele era um palco onde ele estava com as suas personagens. Ou então ele era uma pessoa tão aborrecida, ou tão brilhante, que conseguiu sempre ocultar o verdadeiro Andy." De tal forma que, quando morreu em 1984, de uma forma rara de cancro no pulmão, ninguém acreditou, durante algum tempo - ironicamente, cumpria-se assim a prática existencial de Kaufman, segundo a qual a realidade não existia, era uma invenção."Não era uma pessoa doente, não havia sinais de esquizofrenia. Cada vez me convenço mais, depois de falar com as pessoas que o conheceram, que tudo era calculado", explicou ontem Milos Forman durante uma conferência de imprensa.. "Ele queria ser aquilo que quer ser qualquer outro actor: tornar-se a maior estrela do mundo. Infelizmente o destino foi cruel com ele, morreu demasiado novo, não poderemos nunca saber se ele conseguiria concretizar esse sonho."É sobre o vazio que decorre permanentemente o filme de Forman e a interpretação de Jim Carrey, fazendo de "Man on the Moon" muito menos uma "biografia filmada" e mais uma experiência de "performance". O realizador consegue, prodigiosamente, ir anulando do filme os sinais de época e todas as relações da personagem principal que poderiam garantir a sua existência. De forma bizarra, o filme vai desaparecendo aos nossos olhos, para ficarmos só com Carrey, com o vazio dos seus olhos esbugalhados e, no plano final, com o perfil de Kaufman em anúncio luminoso, ou seja, o máximo que nos poderemos abeirar dele. Carrey, por seu lado, vai aniquilando a comédia, como um jogo de massacre do próprio Kaufman, para deixar que se cole à pele do espectador os restos do drama. Será a mais incompreendida prestação da sua carreira? "Man on the Moon" foi um fracasso comercial nos Estados Unidos onde a figura de Kaufman é conhecida (se calhar por isso...) e não foi nomeado para os Óscares nem valeu, como se previa, a nomeação de Jim Carrey - que não veio a Berlim, dizem as más línguas, porque não vale a pena insistir num jogo que já está perdido. Veremos o que pode fazer por ele, ou pelo filme, um festival europeu de cinema, onde "Man on the Moon" está em competição."Nunca tinha visto um actor trabalhar tanto, dar tanto do seu coração e da sua cabeça. como Jim Carrey", concluiu Milos Forman. "Estou chocado pelo facto de a Academia o ter ignorado. Mas a comédia nunca é favorecida quando se trata dos Óscares. E acho que ele está a pagar o preço por ser demasiado bom. As pessoas vêem-no, ele é tão perfeito que não acreditam que por detrás daquilo esteja uma interpretação."