Ladrão de rostos
Quando começou a fotografar, Walker Evans tentou perceber o que estava a ver. Desistiu. "Se a coisa está ali, pronto, está ali". Eliminou os artifícios e criou um estilo documental com que fez o retrato do nascimento da América moderna. Antes de morrer, triste, alcoólico e arruinado, regressou às origens produzindo milhares de retratos. O Metropolitan de Nova Iorque mostra a mais completa exposição do círculo perfeito que é a obra de Walker Evans.
Nos últimos meses de vida, quando as mãos e o cérebro deixaram de conseguir lidar com máquinas sofisticadas, Walker Evans encontrou uma polaroid e disparou-a 2700 vezes. O velho fotógrafo, de barbas brancas pelo peito, fez sobretudo instantâneos de formas abstractas e das raparigas que tentava impressionar. Não se pode dizer que os quadrados de cores saturadas que encerram a exposição retrospectiva, que se pode ver no Metropolitan Museum de Nova Iorque até 14 de Maio, tem boa qualidade. Diga-se antes, como a crítica, que Evans regressou ao "nível mais básico" da fotografia.O fotógrafo norte-americano que descobriu, nos anos 20, que roubar rostos era o que mais gostava de fazer, decidiu que não podia morrer sem voltar a brincar, apanhando as expressões das raparigas desprevenidas que lhe passavam pela frente. "O que um retrato deve ser: anónimo e documental, uma imagem clara e limpa da humanidade", escreveu. Walker Evans III, que nasceu na cidade de St. Louis em 1903, teve a sorte de ter um pai rico e "inteligente" - ofereceu aos filhos um brinquedo chamado Kodak, que apareceu no mercado no final do século passado, e Walker e a irmã, Jane, passavam o tempo a tirar fotografias tipo passe que revelavam na casa de banho.São estas fiadas de rostos que abrem a mais completa exposição da obra do fotógrafo que morreu em 1975, arruinado e alcoolizado. Nas aulas que dava na Faculdade de Design Gráfico da Universidade de Yale, dissertava sobre os efeitos do álcool no cérebro - em 1974, por desespero e inconsciência, vendeu todo o seu espólio, negativos incluídos, por trinta mil contos."Walker Evans tinha uma capacidade única para ver o presente como se fosse já passado e transmitir essa visão histórica. Os seus protagonistas são rostos nos cafés, nos anúncios publicitários, nas ruas das pequenas cidades. Criou uma enciclopédia da construção da América moderna com as suas fotografias em que mostra uma nuance de poeta e uma precisão de cirurgião", diz o catálogo da exposição.Apesar de máquinas fotográficas terem povoado a sua infância e juventude, Walker Evans entrou para a universidade decidido a tornar-se escritor. Foi em Paris, para onde foi enviado pelo pai quando optou por abandonar a escola, que se convenceu que as imagens "falavam melhor" do que qualquer outra forma de arte. No início, explicou, "tentava perceber com exactidão o que estava a ver". "Até que descobri que não precisava. Se a coisa está ali, pronto, está ali". Walker Evans pertence a uma geração que rompeu com o primeiro movimento modernista proclamando a acessibilidade da arte. "Esta geração acabou com o hermético e favoreceu o directo", criando uma espécie de expressionismo documental, explica James Mellow na biografia "Walker Evans", publicada no ano passado. O estilo factual e sem artifícios de Walker Evans revelou-se perfeito para retratar a Grande Depressão - um momento particularmente produtivo para o fotógrafo -, que apanha quando regressa aos Estados Unidos, nos anos 30. Com o escritor James Agee, parte para o Sul, ao serviço de um departamento governamental com a missão de reunir testemunhos que sustentassem a política de subsídios estatais aos agricultores arruinados. "Se eu pudesse, não punha aqui palavras. Seriam só fotografias, fragmentos de roupas, bocados de algodão, torrões de terra, lascas de madeira e de ferro, odores", escreveu James Agee no livro que resultou do trabalho, "Let us praise famous man". O escritor tinha razão. As fotografias da família Bud Fields do Alabama expõem toda a miséria e solidão nos campos de algodão. No Verão de 1936, o calor e a humidade são insuportáveis e o vestido da mulher de Bud está tão ensopado que lhe molda o corpo magro. Os meninos estão semi-nus. Numa parede estão alinhados os tesouros da casa de madeira - meia dúzia de colheres, dois ou três garfos, umas panelas de lata, um frasco sujo. Há uma cama de ferro ferrugento com lençóis encardidos. Na família, só a sogra usa sapatos. "Os sapatos de trabalho dos homens - anotou Agee - são usados com certos animais [até à exaustão] e então são herdados pelas mulheres". Os Burrough - parte desta série já foi exposta nos Encontros de Fotografia de Coimbra - é mais abastada: a jarra de flores em cima da mesa está vazia, mas existe; a cama está pintada e tem lençóis lavados."A essência do trabalho e do modernismo de Evans é separar a fotografia do seu objecto literário e deixá-la ganhar autonomia estética. As fotografias não são ilustrações de um texto, são imagens que mostram a paisagem com um imediatismo e uma claridade que são exclusivamente território da fotografia", explica a introdução da biografia. A aparente ausência de emoções quase fazem acreditar que as fotografias de Walker Evans são a antítese da arte. O seu poder reside precisamente na ilusão de serem improvisadas. Evans passava horas, ou dias, frente a um objecto ou um ser humano antes de encontrar a imagem perfeita. Foi assim, de forma paciente e calculada, que trabalhou entre 1938 e 1941 no metropolitano de Nova Iorque, onde escondia a câmara dentro do sobretudo para apanhar os tais retratos "anónimos e documentais" que desejava. "Aqui, [as pessoas] baixam a guarda e a máscara cai. Mais do que na camas solitárias (onde há espelhos), os rostos ficam em repouso aqui em baixo", escreveu Evans.A prosperidade das décadas que se seguiram e os novos movimentos artísticos dataram o estilo de Walker Evans, que escreveu crítica de arte e trabalhou para revistas como a "Time" ou a "Fortune" antes de se tornar professor de fotografia em Yale. Seguiram-se os anos da decadência. Por causa do álcool, das úlceras no estômago, da falta de dinheiro, do fim do segundo casamento e do vazio, apesar dos mimos dos alunos que lhe tratavam da casa e lhe vigiavam a saúde. Um dia, durante uma entrevista para o "New York Times", James Mellow perguntou-lhe porque não fazia como outros da sua geração e escrevia memórias. "São tudo mentiras. Só se podem contar mentiras sobre o passado", respondeu o fotógrafo que se esforçou por manter a vida pessoal secreta. Aprendeu a esconder-se em Paris, quando decidiu manter-se afastado dos outros americanos "estrangeirados" que tentavam inutilmente procurar o que já não existia - a cidade dos escritores. "Resta um perfume, mas é tudo". Foi então que Walker Evans, o ladrão de expressões que nos auto-retratos preferia apanhar apenas a sua sombra, adoptou a filosofia de vida de um dos seus heróis, André Gide: "Não me conheçam muito depressa".