Até que foi deusa
Passou por aqui como um fogo a arder. Dela se disse que era "a violência surrealista feita mulher". Diante do Tribunal Plenário depôs em verso: "Senhores juízes sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto." Toda a poesia de Natália Correia, num volume.
Quando se percorre a poesia escrita por mulheres ao longo do século XX, o nome de Natália Correia (1923-1993) continua a surgir como um dos que causaram uma repercussão mais duradoura, quer pela sua personalidade forte e polémica, quer pelo alcance da sua obra literária, na qual se manifesta uma vocação poderosamente dionisíaca e por isso excessiva, capaz de apreender magicamente a realidade e de a transfigurar mediante uma rica imaginação metafórica, sobretudo a partir de "Dimensão Encontrada" (1957), já que os seus primeiros livros ("Rio de Nuvens", de 1947, e "Poemas", de 1955) exprimem ainda uma atitude lírica mais tradicional.É antiga a questão de saber até que ponto Natália Correia poderá ou não considerar-se uma escritora surrealista, embora nunca tenha pertencido a qualquer movimento com esse nome: definida algures por Claude Roy como "la violence surréaliste faite femme", a própria autora admitiu alguma proximidade com a visão surrealista do mundo, essencialmente no que toca a uma "identificação entre a poesia e a magia", na medida em que ambas procuram o acesso a uma alquimia libertadora (cf. Fernando J.B. Martinho, "Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50", Lisboa, Colibri, 1996, p. 75). Trata-se, no fundo, de uma radical vontade criadora, como podemos sentir num texto que nos fala de uma ressurreição apta a transformar a morte em vida e a tristeza em alegria: "A harpa do vento / e os meus dedos de ventania / compuseram uma canção / da mais fantástica alegria. // (...) // É uma onda de magia / onde se enrolam os mortos / erguidos da terra fria / dum rosto que lhes pintou / a nossa melancolia" (p. 93).Foi sob o efeito do irresistível impulso dessa "onda de magia" que se construiu o essencial da escrita de Natália, em que um dos traços mais flagrantes consiste numa posição (sempre reafirmada) de rebeldia diante das instituições e dos poderes estabelecidos ou de quaisquer regras impostas pela força. Até certo ponto, é como um sinal dessa rebeldia que se compreendem as incursões da autora no campo da poesia satírica e humorística, dirigida contra figuras ou acontecimentos da esfera política - veja-se a sequência das "Cantigas de Risadilha" (pp. 477/491), ridicularizando episódios da vida parlamentar que Natália acompanhou enquanto foi deputada -, mas igualmente certos poemas isolados, como a célebre "Queixa das Almas Jovens Censuradas" (pp. 121/122), fazendo eco de um profundo grito de revolta que preza, acima de tudo, a liberdade do poeta contra todas as formas de sujeição. E é também isso a estar em jogo num outro texto muito conhecido ("A Defesa do Poeta"), aliás escrito com a intenção de ser lido no Tribunal Plenário que no tempo da ditadura acusou Natália Correia: "Senhores juízes sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. // (...) // Sou (...) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / (...) // Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever. / Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer" (pp. 330/331).Lido este excerto, convirá atender a dois aspectos: por um lado, mesmo levando em conta o intuito profundamente afirmativo do texto (que desenvolve a vigorosa declaração: "sou um poeta"), o lugar de quem escreve poesia surge relacionado com uma excepcionalidade inquietante ou perturbadora, já que se identifica com um "defeito" ou uma "avaria cantante / na maquineta dos felizes", que corresponderiam à maioria; por outro lado (e refiro-me agora aos dois últimos versos), acentua-se a dimensão gustativa, sensorial ou carnal da poesia, inscrevendo-se num entendimento global do mundo em que "o espírito é tão real como uma árvore" (p. 459), pressupondo uma integração harmoniosa na natureza. Ficamos, portanto, dentro de uma unidade fundamental entre todas as coisas humanas e cósmicas, naturais e divinas: "Vem das estrelas o sangue que nos guia / E na amorosa perfeição da carne / Está toda a eternidade resumida" (p. 516).Também enquadrado no mesmo propósito de união e ampla comunhão universais está um politeísmo estrutural que leva a poesia desta "feiticeira cotovia" a celebrar a beleza do mundo, conotando-a com a presença do sagrado que o povoa e assim reflecte os poderes de uma pluralidade de deuses e deusas cujo culto, em vez de exigir submissão - "Os deuses não nos querem de joelhos" (p. 512) -, nos convida, pelo contrário, a um esfusiante cântico da vida e do amor, do qual podem ser emblemas os jardins de Adónis onde se recusam os labirintos da racionalidade e se declara a superioridade das sensações, tornadas elas mesmas divinas: "Sentir nos baste. Ideias são reveses. / Da vida, as naturais disposições, / Sigamos, Flávio. Até que sejam deuses / As nossas sensações" (p. 548).Perto das sensações mais vibrantes se encontram, aliás, todos os elementos de uma natureza cujo incognoscível "daimon" feminino se condensa na famosa imagem da "Mátria", nem sequer demasiadamente erotizada no sentido mais comum que atribuímos à sexualidade, mas sobretudo transmissora de paz, de bem-estar e de reconciliação com um estado primitivo, maternal ou genesíaco do universo: "E se o mundo em ti principiava, / No teu mistério entre astros absortos, / Suavemente, ó mãe, tudo termina" (p. 581). Também o Amor (com maiúscula) ultrapassa, deste modo, as habituais fronteiras da consciência individual, elevando-se ao mais alto grau de gnose mística e adquirindo o estatuto de uma sabedoria esotérica comparável à de uma verdadeira alquimia: "Indemne atravessei as labaredas / porque o Amor faz a Obra / e o fogo faz o Amor" (p. 587).Para concluir, digamos que a poesia de Natália Correia configura um "ofício das trevas", mergulhando nas águas de mistérios que não ousa desvendar e assentando numa ideia de libertação total do ser, num processo de comunhão iniciática, num ritual posto em jogo não apenas graças aos já mencionados poderes alquímicos, mas também por uma abertura à "Saudade" portuguesa, essa "retráctil flor da ausência" cujo místico perfil se recorta sobre o passado e o futuro e parece conferir à obra desta autora uma indestrutível crença em qualquer coisa que extravasa os mesquinhos limites da razão humana. Na esteira dos românticos ou dos seus herdeiros surrealistas, é sempre muito para lá de tais limites que esta poesia nos deseja convocar, arrastando-nos para uma dimensão soberanamente libertadora da realidade e da linguagem - como se lê no texto final dos "Sonetos Românticos", que funciona como um "credo":"Creio nos anjos que andam pelo mundo, / Creio na Deusa com olhos de diamantes, / Creio em amores lunares com piano ao fundo, / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, // Creio num engenho que falta mais fecundo / De harmonizar as partes dissonantes, / Creio que tudo é eterno num segundo, / Creio num céu futuro que houve dantes, // Creio nos deuses de um astral mais puro, / Na flor humilde que se encosta ao muro, / Creio na carne que enfeitiça o além, // Creio no incrível, nas coisas assombrosas, / Na ocupação do mundo pelas rosas, / Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen" (p. 616).