Cem anos de genocídios

No trágico balanço de seres humanos mortos pelo ódio do século pesam os crimes cometidos contra os que foram eleitos como inimigos apenas por serem, crerem ou pensarem de forma diferente. Quando a Segunda Guerra Mundial se extinguiu, inventou-se uma palavra própria para os definir e o genocídio entrou enfim no dicionário dos horrores da humanidade contemporânea. Na extensa lista de crimes por genocídio encontram-se o extermínio dos Hereros, de judeus, camponeses ucranianos, timorenses, tutsis ruandeses e, entre outros, cambojanos. Em cem anos de genocídio, 16 a 17 milhões de pessoas perderam a vida.De que falava o filósofo britânico Isaiah Berlin quando disse recordar o século XX como "o mais terrível da história do Ocidente"? Em que pensava o Prémio Nobel da Literatura William Golding quando o considerou como "o mais violento da história humana"? Nas guerras, certamente, nas duas mundiais, na fria e nas outras, algumas menos mediáticas mas nem por isso menos mortíferas. No século que inventou os "campos de concentração", a "solução final", a "limpeza étnica" e, mais recentemente esse monumento ao cinismo que compara a morte de civis inocentes a simples "danos colaterais", uma outra razão pesa na apreciação deste "terrível" e "violento" século: o genocídio. Académicos como Z. Brzezinski estimam que o número de pessoas mortas ou abandonadas à morte no século XX se situe na ordem dos 187 milhões e nesta contabilidade do horror, uma décima parte, entre 16 e 17 milhões de pessoas, foram vítimas de actos de intolerância ideológica, étnica, racial ou religiosa. Das guerras do século sobraram-nos as imagens desumanas das trincheiras de Verdun ou do Somme, no conflito de 1914/18, a destruição de Hiroxima e Nagasáqui, o rasto de dor do napalm no Vietnam. Nos actos de genocídio, sobra geralmente o silêncio do crime envergonhado: não há imagens bélicas espectaculares nem paradas imponentes de soldados. O início dos actos de genocídio e a sua execução sistemática são obra da premeditação e da intencionalidade, mas quando, no exterior, se conhecem as suas consequências sobre populações indefesas o que sobra é o silêncio, a camuflagem e a negação. O seu fim último não é a vitória sobre o inimigo, mas a aniquilação pura e simples dos povos ou dos grupos visados.Quando o jurista polaco de origem judaica Raphael Lemkin criou a palavra genocídio - do grego ?genos?' (raça ou tribo) e ?cidio?(assassínio, morte) -, em 1944, já o século ia longo de perseguições e extermínios. A definição do professor de Direito de Yale e Duke, nos Estados Unidos, serviria no entanto para enquadrar a terminologia adoptada pelas Nações Unidas na "Convenção sobre o Genocídio", de 9 de Dezembro de 1948. Os crimes ficaram tipificados e as punições consagradas, mas nem assim a violência exercida contra os que são ou pensam de modo diferente deixou de existir. Até aos nossos dias. A barbárie permaneceu nas remotas florestas tropicais de África, sob os escombros de velhas civilizações na Ásia e, nesta década, emergiu de novo no continente berço do humanismo, a Europa.Dos "campos da morte" de Pol Pot no Camboja retemos ainda as imagens brutais do filme de Roland Joffé (The Killing Fields, Terra Sangrenta, na versão portuguesa). Na Ucrânia, a cortina de ferro que isolou durante décadas o regime de Estaline impediu que o drama de um povo inteiro votado à fome em 1932/33 fosse conhecido de imediato. Nos campos de concentração nazis, as imagens de judeus votados às câmaras de gás e, principalmente, os registos de Auschwitiz no momento da libertação pesaram e ainda pesam no nosso inconsciente colectivo. Mesmo que em todos estes episódios de horror fique sempre algo por saber, a herança pesa. "A memória pode ser um túmulo, mas também pode ser o verdadeiro reino do homem", disse a propósito Elie Wiesel, um dos sobreviventes do holocausto nazi, e por todo o mundo há centenas de académicos e mais de 2000 mil organizações de defesa dos direitos humanos a lembrar que os horrores ainda nos são demasiadamente próximos para que se possam esquecer. Centenas de investigadores, principalmente de universidades norte-americanas, continuam ainda a debater os casos de barbárie que devem ou não fazer parte da lista do genocídio, mas à margem de se saber se o assassínio em massa dos Ibos da Nigéria, no decorrer da guerra do Biafra, ou a perseguição dos tibetanos pelos chineses é ou não é genocídio, o estado da situação permite actualmente definir uma lista de horrores mais ou menos consensual. Para todos os efeitos, a convenção da ONU é relativamente explícita: são actos de genocídio todos os que sejam cometidos com "a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso". O extermínio de três milhões de habitantes do Bangladesh pelo exército paquistanês em 1971, o massacre de 150 mil hutus no Burundi, em 1972, as brutalidades de Pol Pot no Camboja, o genocídio de 700 mil tutsis no Ruanda em 1994 entram nesta tipificação de crimes, mas a "limpeza étnica" na Bósnia depois do colapso da Jugoslávia ainda não merece uma total concordância entre os especialistas.Os grandes culpados do genocídio foram geralmente líderes de Estados totalitários. Coube, de facto, a Hitler, Estaline, Pol Pot, Suharto ou Sukarno a principal responsabilidade de atear o rastilho que acabaria por envolver em massacres contra vítimas indefesas o braço tentacular do Estado. A partir daí, ergueu-se uma espiral de ódio cimentada pela propaganda que atingiu intelectuais, religiosos e os mais simples cidadãos. Há, no entanto, excepções, como a protagonizada pelo general von Trotha, o comandante chefe do exército alemão estacionado no sudoeste africano (actual Namíbia), que em 2 de Outubro de 1904 exara um decreto sintomaticamente intitulado "Atrocidade ou Extermínio", no qual proclamava: "Todo o herero [um povo de 80 mil pessoas que as tropas alemãs extinguiram em menos de uma década] encontrado no interior das fronteiras alemãs com ou sem arma, com ou sem gado, será fuzilado. Não receberei nenhuma mulher ou criança. Enviá-los-ei para o seu povo ou fuzilá-los-ei. Esta é a minha decisão para o povo herero".Qualquer tentativa de promover uma hierarquia de valores nesta vaga de extermínios é pelo menos tão difícil como procurar explicações racionais para o que aconteceu. Em termos de mortes de seres humanos, Estaline e o regime de Hitler disputam o primeiro lugar na lista dos maiores criminosos. A acção dos Einsatzgruppen (esquadras móveis de assassinos das SS nazis) e a estratégia da "solução final" desenhada por Reinhard Heydrich e decidida no subúrbio berlinense de Wannsee em Janeiro de 1942 abriu, com ou sem autorização directa de Hitler, um fosso no qual pereceram entre cinco a seis milhões de Judeus. Num decreto de 14 de Dezembro de 1932, assinado por Estaline e Molotov, incumbem-se as autoridades ucranianas do partido de "limpar os elementos contra-revolucionários através da sua prisão ou envio para campos de concentração, sem excluir a aplicação das mais altas medidas de legalidade (ou seja, a execução)". Consequência: entre cinco a sete milhões de camponeses (kulaks) resistentes à colectivização pagam a sua ousadia com a morte.Custa ainda hoje acreditar que estes actos reflectidos tivessem medido com exactidão a dor humana que provocaram em milhões de pessoas. A dor que a sobrevivente Nechama Epstein, transportada do "ghetto" de Varsóvia para Auschwitz, sentia à noite quando via "o céu todo vermelho da incandescência do fogo" e adivinhava que "era o sangue a derramar-se no céu". S. Lozovy, um agricultor de uma pequena aldeia ucraniana, testemunhou para o futuro o drama de uma comunidade faminta, obrigada a esperar pela morte nas suas casas sem poder sequer lutar pela sobrevivência: "No dia 28 de Março de 1933 ficámos chocados com a notícia que Myron Yemets e a sua mulher Maria se haviam tornado canibais. Depois de cortarem a cabeça aos filhos, salgaram-lhes os corpos para conservar a carne. Os vizinhos sentiram o cheiro da carne no fumo da chaminé e, dando conta do desaparecimento das crianças, foram a sua casa. Quando lhes perguntaram por elas, contaram a história toda. Disseram que voltariam a ter filhos. Que de outra maneira morreriam e seria o fim da família".As perdas humanas do holocausto e da grande fome na Ucrânia só aconteceram devido às capacidades da tecnologia militar e à organização dos Estados modernos - o historiador Jonathan Glover afirma no seu recente livro "História Moral do Século XX" que a grande diferença dos horrores deste século resulta apenas uma questão de escala. Sem a capacidade e os meios de organização do século, jamais o governo dos "Jovens Turcos" poderia ter concebido um plano de expulsão e extermínio de uma comunidade de dois milhões de habitantes que vivia no seu território há mais de três mil anos, os arménios. Para levar a cabo um plano em três etapas - deportação, execução e fome -, todas as esferas da administração pública foram envolvidas, ou na organização de caravanas de deportados até ao deserto sírio ou na execução pura e simples dos que resistiam à longa caminhada, em Deir El-Zor. Numa época de carência de balas, necessárias ao esforço da Primeira Guerra Mundial, o extermínio de mais de um milhão de arménios obrigou a práticas de uma indizível brutalidade. A pequena Sarkis Agojian, que a mãe conseguiu salvar no caminho para o deserto "oferecendo-a" aos beduínos, contou o que aconteceu à sua família: "Mais tarde, uma rapariga disse-me que vira os polícias turcos a forçarem os deportados a despirem-se e a atirarem-se do despenhadeiro para o rio Eufrates. Quando chegou a vez da minha mãe, ela tirou o ouro da garganta, abraçou o meu irmão de quatro anos e atirou-se ao rio com a criança nos seus braços. Eu tinha nove anos e quando a rapariga acabou de me contar o que acontecera, cobri o rosto com o meu xale e chorei, chorei, chorei..." (Sarkis conseguiria libertar-se da escravidão dos beduínos aos 15 anos e fugiu para os Estados Unidos com a ajuda de organizações arménias estabelecidas na Síria).Nos grandes actos de genocídio da segunda metade do século, o poder destruidor do aparelho do Estado voltou a exercer-se com ou sem a ajuda das populações. No caso do Ruanda ou do Burundi, os apelos dos mais altos dirigentes foram suficientes para levar a maioria da população a envolver-se em actos de brutalidade - no Ruanda, vários relatos confirmam que os hutus cortavam os tendões de Aquiles aos seus concidadãos tutsis em fuga, regressando mais tarde para o golpe final. Os populares organizaram milícias e as perseguições dirigiram-se não apenas aos tutsis como aos membros reticentes da própria etnia. Ninguém pode ficar imune, toda a nação se envolveu. A estação Rádio Mille Collines da capital Kigali lembrava à população de etnia hutu que "o inimigo está lá fora" e convidava-a a "ir caçá-lo" porque "as sepulturas ainda estão meias". Mais de 700 mil ruandeses de etnia tutsi foram brutalmente assassinados. Josianne Mukeshimana, então com 15 anos, refugiou-se numa igreja e conseguiu sobreviver ao massacre: "Escondi-me debaixo dos corpos dos que tinham sido mortos. Quando os hutus julgaram que toda a gente estava morta dedicaram-se à pilhagem e depois saíram. Algumas crianças, inconscientes dos perigos, pensei eu, tinham ficado na igreja. Chamei uma, aí com os seus nove anos, para me ajudar. Disse que não podia e foi então que reparei que lhe tinham cortado os braços".O mesmo envolvimento colectivo aconteceu na Indonésia, em 1965, quando meio milhão de membros do PKI, o partido comunista legalizado, foram massacrados pela polícia, pelo exército e pela turba de populares. Na espiral do ódio atiçado pelas entidades oficiais e pelos lideres muçulmanos, os mais pacatos cidadãos viram-se capazes das mais horrorosas atitudes. Pipit Rochijat lembra-se dos "corpos a flutuar no rio Brantas, sem cabeça, de estômagos abertos. Para garantir que se não afundavam, eram amarrados, empalados até, em varas de bambu. E a partida de cadáveres de comunistas da região de Kediri rio abaixo chegou à sua 'era dourada' quando os corpos eram empilhados em jangadas onde era hasteado o estandarte do PKI".No outro acto de genocídio perpetrado por indonésios, o horror foi protagonizado pelos 30 mil soldados que participaram na "Operação Komodo", lançada em Dezembro de 1975 contra Timor Leste. Até que as primeiras testemunhas credíveis pudessem entrar no território, em 1979, mais de 200 mil timorenses foram fuzilados, mortos por maus tratos ou pela fome imposta. A mesma estirpe de brutalidade foi usada pelo exército paquistanês na sua intervenção no Bangladesh, entre Março e Dezembro de 1971. Até ao momento em que, com a ajuda do exército indiano, os bengalis derrotam a força de intervenção paquistanesa e declaram a independência, três milhões de pessoas foram mortas e mais de 250 mil mulheres violadas. Amita Malik conta um episódio deste período negro: "Primeiro levaram-lhe o marido, apesar das súplicas que elas lhes dirigiu. Então eles regressaram com ele meio morto, depois de uma brutal tortura. Foi então que, por volta das oito ou nove, outros soldados vieram e violaram-na em frente ao seu marido e filhos. Prenderam o marido e batiam nos filhos sempre que eles choravam. Às 2h30 outros soldados regressaram e levaram-na. Prenderam-na num 'bunker' e violaram-na sucessivamente até que se tornou insensível. Mandaram-na de volta três meses depois, grávida. Os aldeões mostraram simpatia pelo seu sofrimento, mas o marido recusou recebê-la. Os vizinhos pressionaram-no a aceitá-la de volta. Ele enforcou-se. Ela está agora numa fase avançada da gravidez e não pára de perguntar; ?mas porquê, por que é que fizeram isto? Seria melhor se ambos tivéssemos morrido'".Ainda é cedo, demasiado cedo, para se prever as consequências finais da furiosa intolerância que leva ao genocídio. Em muitos casos, a sede de vingança leva décadas a apagar-se, como se viu recentemente na zona dos Grandes Lagos, onde a rivalidade - relativamente recente e promovida pelos ditames do neo-colonialismo -, gera perseguições sucessivas, primeiro no Burundi, depois no Uganda, mais tarde no Ruanda. Nas gerações que sobreviveram aos massacres são frequentes os traumas psicológicos, "stress pós-traumático" e cegueira psicossomática. Mas, como escreveu o italiano Primo Levi, eles só nos podem oferecer testemunhos, nunca a realidade: os que sobreviveram por "prevaricação, habilidade ou sorte, jamais tocaram o fundo. Os que tocaram e viram a face das Górgonas [facínoras] não voltaram ou voltaram sem palavras".[Os testemunhos citados foram transcritos de "Century of Genocide; Eyewitness Accounts and Critical Views", de Samuel Totten, William S. Parsons e Israel W. Charny. Ed: Garland Publishing, Inc. N.Y/Londres 1997]

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