"A paz em Angola ainda está longe de ser uma realidade"
O presidente da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé, D. Zacarias Kamuenho, arcebispo do Lubango, disse ao PÚBLICO que as recentes vitórias militares do Governo de Luanda ainda "não representam a paz". A guerrilha da UNITA prossegue e os direitos humanos são violados por qualquer uma das partes em conflito.
D. Zacarias Kamuenho, de 65 anos, um dos três arcebispos católicos de Angola, actualmente na calha para vir a ser elevado ao cardinalato, testemunhou durante os últimos oito dias que continua a não ser praticamente possível circular por terras do interior, uma vez que as operações militares prosseguem, sem fim à vista.Responsável pela arquidiocese do Lubango, no Sul do país, e presidente da conferência episcopal que zela tanto pelos fiéis angolanos como pelos san-tomenses, comentou depois disso: "Era bom que as vitórias governamentais representassem a paz. Mas tal objectivo ainda está de algum modo longe de ser uma realidade". "A guerrilha continua, na medida em que eu queria ir ao Bailundo e não pude ir porque me disseram que há ataques. Esses ataques são feitos pela guerrilha. E quem diz ao Bailundo, diria também para as outras localidades. Eu tenho família no Katchiungo e não pude lá ir porque há ataques", explicou D. Zacarias. "Esses ataques naturalmente não são noticiados. As notícias que hoje nos aparecem referem que as Forças Armadas Angolans (FAA) estão a avançar pacificamente. Isto é, sem grandes dificuldades no terreno. Mas que há ataques, há ataques. A gente vê isto também pelos feridos militares que chegam cá a Luanda ou às localidades [no interior] onde está o Governo, que comprovam que de facto há ataques." O prelado, que esteve no último fim-de-semana de visita à sua província natal, o Huambo, regressou do Planalto Central extremamente preocupado com o que viu e ouviu, a projectar um quadro bastante crítico, cujas cores continuam a ser demasiado cinzentas para os seus gostos e esperanças. "Eu fui menino do Huambo, trabalhei com meninos do Huambo quando adulto e hoje encontrei os meninos do Huambo de facto verdadeiramente desfocados daquilo que se esperava. Pensava numa nova bandeira e afinal a nova bandeira não apareceu. Enfim, sonhávamos para eles um momento de liberdade, mas o que fui encontrar, sobretudo no Casseque, onde está um acampamento de deslocados, dá para chorar", desabafou.Entre as informações que recolheu no Huambo, D. Zacarias Kamuenho destacou a violação sistemática dos direitos humanos, no âmbito de uma intensa e violenta pressão de que as populações civis são alvo, por parte quer das forças governamentais quer dos homens de Jonas Savimbi. "O povo continua a sofrer. Sofre porque, segundo dizem, as FAA quando chegam a uma localidade também maltratam o povo, dizendo que, se não se entregaram até então, é porque são da UNITA; e o povo, é claro, é quem paga essas consequências, senão mesmo com a morte." Em relação ao comportamento da UNITA, disse: "Sabemos que faz o mesmo ou pior, porque ameaça o povo a não se entregar. Ameaça e mata aqueles que procuram fugir para as zonas do Governo. Eles, assim, também estão a massacrar o povo." D. Zacarias regressou do Huambo absolutamente convencido de que "a população está a sofrer dos dois lados", realidade que a sua "consciência de bispo" não pode silenciar: "Era bom que as nossas autoridades prestassem um pouco mais de atenção a este sofrimento, tendo em conta o que na realidade se passa lá mesmo nos campos. Por outro lado, seria bom que a opinião pública não fosse tanto [atrás] do que às vezes a imprensa estatal diz, porque quem vive com o povo vê que não é a realidade, que a realidade é totalmente outra." Sobre a possibilidade de o Governo conseguir em definitivo eliminar completamente do terreno a UNITA ou pelo menos reduzi-la à sua mais insignificante expressão, acantonando-a, o presidente da Conferência Episcopal comentou que a História já devia ter ensinado os angolanos a pensarem melhor: "Uma pessoa que vive neste país e que tem uma visão geral do mesmo, em termos de conhecimento e experiência, sabe que para se acabar com a guerra não é militarmente que tal se consegue." D. Zacarias Kamuenho comparou os esforços de neutralização da guerrilha ao comportamento da canalização degradada das cidades angolanas, onde uma avaria que se resolve hoje surge tempos depois noutro ponto da rede; e só com a substituição completa da tubagem podre se poderia encontrar uma solução duradoura para o problema dos furos: "Para estancar, para acantonar a guerra, seria primeiro preciso acantoná-la nos corações das pessoas. Acantonar a guerra e as suas causas, causas estas que nunca foram analisadas em profundidade." O homem que se espera venha a ser próximamente o segundo cardeal angolano, depois de D. Alexandre do Nascimento, arcebispo de Luanda, entende que o problema da guerra não poderá ser resolvido por meio da existência de uma UNITA dirigida por Eugénio Manuvakola: "Quem são aqueles que estão com as armas na mão? Não é a UNITA de Manuvakola. É a UNITA de Savimbi. Portanto, nós continuamos a dizer que era bom que se encontrasse uma maneira de parar com a guerra. Essa alternativa é a alternativa pela qual a Igreja se tem batido. Aliás, a sociedade civil, quando fala em reconciliação, é para dizer que ela ainda não se deu. Temos um Governo de Reconciliação Nacional, mas afinal o que é que se fez até agora para uma reconciliação autêntica, para uma reconciliação efectiva?".Sobre os esforços mais recentes que a Igreja Católica tem desenvolvido no sentido de convencer o Governo a não fechar completamente todas as portas ao diálogo com a UNITA histórica, a de Jonas Savimbi, D. Zacarias Kamuenho esclareceu que ainda nada foi feito.