Os gloriosos malucos das máquinas voadoras
Para os incondicionais, "Major Alvega" regressa à RTP 1. Com mais humor, que passou a ter a chancela das Produções Fictícias, mais acção e mais romance - a pensar no público feminino, que permaneceu mais indiferente ao fascínio do "ás da aviação aliada".
Estalinegrado, 1943. A Europa é um imenso campo de batalha. Na Frente Leste, o General Inverno empata o exército nazi, mas, apesar do gelo e das temperaturas irracionais, a investida alemã mói a resistência russa. É neste cenário desanimador que Winston Churchill se desloca a Moscovo para uma reunião de emergência com Estaline. "Estamos de mãos atadas. A Rússia terá que continuar sozinha a suster a fúria nazi, apesar do cerco, da fome e do cansaço", lamenta o inglês. E, para sossegar Estaline, oferece-lhe Major Alvega, o ás luso-britânico da Royal Air Force. Missão: fornecer instruções de voo aos pilotos soviéticos, em demonstração da boa vontade aliada.É assim que começa "Outubro Vermelho", o primeiro episódio da segunda série de "Major Alvega". Talvez os detalhes não sejam exactamente estes, mas o cenário algo insólito de uma II Guerra Mundial recuperada em formato BD é mesmo a nota dominante desta série que não é bem animação nem ficção normalizada. Personagens de carne e osso em cenários virtuais, desenhados à mão, a subversão da História para consumo familiar, e um herói feito à medida de uma época em que o maniqueísmo era inevitável: pelos bons, resgatando os portugueses do embaraço da neutralidade, o Major Jaime Eduardo de Cook e Alvega, filho de mãe britânica e pai ribatejano, vai viver 13 novas aventuras a bordo do seu Spitfire. Nos domingos da RTP1, sempre às 19h30.Os novos episódios desta série a vários títulos exemplar - pelo êxito de audiências, pela bem-sucedida internacionalização, pela originalidade no uso da tecnologia - não se afastam muito da estética que o público português já conhece. O trio de actores principais mantém-se (Ricardo Carriço, na pele do herói; António Cordeiro como Koronel von Block, o hilariante mau da fita; e Rosa Bella dando corpo a Fraulein Schmidt, o nunca resolvido "affaire" do Major Alvega), e a linguagem é a mesma. Tudo propositado, até porque, em equipa campeâ, pouco ou nada se deve mexer, explica Rui Taborda, um dos fundadores da Miragem, a produtora portuense responsável pela série: "Não queríamos que houvesse muitas diferenças relativamente ao primeiro pacote de episódios. Há novas histórias, novas personagens, novos universos, mas é uma continuação. Queríamos manter a estética da série, mas julgo que está mais conseguida em termos de desenhos e animações", avalia. Descontinuidade, só mesmo para melhor, garante Rui Taborda, que dirige o trabalho de animação. "A diferença mais acentuada é o humor, que passou a ter a chancela das Produções Fictícias [a equipa responsável pelos guiões da "Contra-informação", por exemplo]. E há mais acção". Mais romance também: a pensar no público feminino, aquele que permaneceu mais indiferente ao fascínio do "Major Alvega". A ideia é tornar a série o mais generalista possível, assegura a equipa da Miragem. "Não há público-alvo. É um produto para todos. Não é apenas uma série "teenager", também é pós-"teenager", esclarece Taborda. Um pouco como o Tintin, "dos sete aos 77", mas em versão dilatada: "Isto é dos oito aos 88, por causa de algumas cenas de amor...", ironiza.De resto, existem muitas razões para aguardar com expectativa este regresso do "Major Alvega": desde a curiosidade do entendido, que quererá averiguar da perfeição técnica do trabalho de animação, à pura procura de diversão dos espectadores mais descomprometidos. E uma galeria de actores experientes em novas roupagens e cenários que variam entre o Tibete, o Porto e a Transilvânia: José Wallenstein, Luís Esparteiro, Ruy de Carvalho e Adelaide João, entre muitos outros. Quando o "Major Alvega" invadiu as cabeças dos autores da série, Henrique Oliveira e Rui Taborda, o formato idealizado era tão inovador que foram necessários cinco anos para afinar a tecnologia que deu à luz os primeiros treze episódios. "A inovação", garante Taborda, "é o segredo do sucesso da série. E a sua proximidade com a banda-desenhada". E é também ela que faz de "Major Alvega" um produto que resiste à catalogação: "Não é uma série de animação. Até criámos um termo novo para a descrever: "animotion", uma mistura de animação e movimento", brinca-se na Miragem.A militância dos responsáveis pela produtora na Nona Arte é notória. "Somos grandes fãs de BD. A ideia de transpor para televisão esse ambiente, misturando-o com personagens reais, pareceu-nos engraçada. E o Major Alvega é a personagem ideal, pela sua ascendência portuguesa", lembra Rui Taborda. Uma ascendência forjada, é certo: na origem, Alvega chamava-se Battler Briton e era inglês de gema; Mário do Rosário importou-o para a revista "Falcão" e nacionalizou-o à boa moda dos anos 60. O difícil, no trabalho de adaptação ao formato televisivo, foi mesmo "encontrar um suporte adequado que não transpirasse tecnologia". Recriar o ambiente artesanal, "feito à mão", da BD foi tarefa complicada, porque convinha disfarçar o enorme arsenal "de computadores, máquinas e 3D" que estão nos bastidores da série.O resultado é um produto "extremamente caro" (o investimento nesta segunda série de 13 episódios de 30 minutos ronda os 130 mil contos) e demorado. "As filmagens são lentas porque os actores não têm referências [o cenário é aplicado posteriormente à imagem], e a pós-produção dura aproximadamente um ano". Factores que justificam o atraso deste regresso, que estava previsto para Outubro. O guarda-roupa, que vem de Londres, a tecnologia utilizada e o rigor da reconstituição histórica também encarecem a produção, que se ressente da ausência de uma indústria de ficção nacional que agilize os circuitos e obrigue os preços a baixar.Rentabilizando a novidade do conceito, a série vai fazendo o seu caminho no mercado internacional: mesmo países com uma indústria audiovisual bem oleada, como o Canadá, a França e os EUA, cederam à qualidade deste "Major Alvega" e importaram pacotes de episódios. "Até recebemos propostas de produtoras americanas e francesas para desenvolver co-produções...", afirma Rui Taborda. Uma hipótese em estudo, que poderá vir a ser posta em prática após a concretização de outros projectos da Miragem que, por enquanto, Rui Taborda não quer divulgar. E que muito dificilmente passarão por mais um regresso do "Major Alvega": "Agora é o fim. Quase de certeza. Chegou o momento de lhe dar um tiro". Uma dura lição para os incondicionais do "ás da aviação aliada": os heróis também morrem. Mesmo na ficção.